sábado, janeiro 16, 2010

31) Uma mensagem de final de ano, um outro final de ano...

O que foi escrito abaixo, me foi remetido de volta por um colega, posto que eu escrevi e nunca mais me lembrei dessa mensagem de final de ano, escrita um pouco mais de dois anos atrás, nessas trocas de cumprimentos festivos que sempre fazemos nessas ocasiões.
Eu a transcrevo pois ela reflete um retrato de um momento, uma avaliação de situação, que certamente foi mais do que confirmada desde então.
Com poucos cortes, por razões puramente de conveniência (e também para atender a critérios da Lei do Serviço Exterior), eu a transcrevo aqui, apenas como registro do que eu pensava, no final do 2007, e que continuo a pensar hoje, início de 2010:

"From: pralmeida@mac.com
To: (xxx)
Subject: Fim de ano
Date: Fri, 21 Dec 2007 11:34:02 -0200

Fico muito sensibilizado pelo seu apoio, meu caro. Não se preocupe mais. O Itamaraty tem uma cultura muito especial e eu nunca fui muito adepto das manias e trejeitos dos diplomatas. Trata-se de uma Casa ultra competitiva, com muita dose de enquadramento nos rituais internos para que essa competicao seja bem sucedida no plano individual, e eu nunca pretendi me enquadrar no estilo. Sempre fiquei no meu canto, estudando, escrevendo, falando com sinceridade aquilo que me parece negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental, e acredito hoje que essas nãoo são as qualidades requeridas para se triunfar na Casa.
Acredito mesmo que poucos diplomatas têm cultura econômica verdadeira, e se prestam a analisar a politica externa do ponto de vista daquilo que os economistas chama de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiencia paretiana, o melhor emprego dos recursos, calculo sobre retorno de investimentos, etc. Tudo é feito de forma muito politizada e de forma absolutamente irracional. Basta ver, por exemplo, (...). Tudo isso é claramente absurdo e no entanto se faz, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa ou mesmo política.
Tempos (...) para o Itamaraty.
Vou continuar minha trajetoria de estudos, com serenidade, mantendo minha dignidade intelectual, mesmo na adversidade atual.
By the way, terminei um trabalho sobre o regionalismo sul-americano, de que lhe dou conhecimento em primeira mao. Agora estou tentando terminar um trabalho sobre o impacto do AI-5 no Itamaraty. Se voce tiver algum depoimento a prestar, com base neste questionario-guia que eu preparei, sinta-se a vontade.
Muito grato pelas suas palavras.
O grande abraco e felicidades.
Paulo Roberto de Almeida" (21.12.2007)

-------------

Ao receber a mensagem, desse amigo, agreguei agora estas palavras:
"Grande Xxxxx, capaz de guardar uma mensagem que havia desaparecido completamente de minha memoria e certamente de meus registros textuais, que so computam trabalhos escritos e terminados.
Grato por me retransmitir. Vou refletir sobre ela.
Nada mudou para mim no plano individual, mas como voce sabe, eu sempre coloquei a honestidade intelectual a frente de minha condição profissional, e certamente também para a PExtBr,....
Tempos... que vao ficar como um travo amargo para todos e cada um de nós, mesmo nos colaboracionistas, tenho certeza.
O grande abraco do
Paulo Roberto de Almeida"(16.01.2010)

segunda-feira, janeiro 11, 2010

30) What a Difference a School Makes - Meu depoimento sobre o Ginasio Vocacional

What a difference a school makes...
O traço todo de minha vida no Vocacional Oswaldo Aranha

Paulo Roberto de Almeida
Aluno da primeira turma (1962-1965) do Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha
(Avenida Portugal, Brooklin, São Paulo, SP)

“O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...”, escreveu Joaquim Nabuco no começo de Minha Formação (1900), quando ele se refere ao período transcorrido no Engenho Massangana, no qual passou os primeiros oito anos de sua vida e onde recolheu suas primeiras impressões sobre o mundo. Nabuco continua dizendo que esses anos teriam sido decisivos na constituição de sua personalidade: “Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões...”
De minha parte, o traço todo de minha vida foi indelevelmente marcado pelos quatro anos que passei, adolescente, no Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, inaugurado em 1962 justamente pela minha turma, pioneiríssima de uma experiência inédita no Brasil, de educação integral e radicalmente diversa de tudo o que se fazia até então em matéria de formação de jovens. A “minha formação”, se eu tivesse de escrever um livro equivalente de memórias, teria de reservar um largo espaço ao Vocacional, tão importante ele foi para a formação de meu caráter, para a definição de minhas orientações intelectuais, das minhas quatro ou cinco primeiras impressões do Brasil e do mundo. Ao “Ginásio” devo o que sou, hoje, e o reconheço plenamente, com toda a saudade que uma memória fugidia pode trazer para a mente do homem maduro, que sou hoje, esses anos de juventude passados num ambiente verdadeiramente excepcional para o jovem que eu era no começo dos anos 1960.

Minha Formação
Até onde minha mente alcança, no recuo para as origens, me vejo um garoto brincalhão, num bairro rarefeito da então periferia da cidade de São Paulo, quase às margens do rio Pinheiros, numa pequena rua de terra, cercada de terrenos baldios – onde a “molecada” (esse era o termo) do bairro disputava animadas peladas de futebol, corridas de pegar, piques, pião, taco e outras brincadeiras típicas de garotos de famílias modestas –, zona repicada de casas simplórias de alvenaria, praticamente nenhum edifício ou construção mais imponente, no que era então a Chácara Itaim (mais tarde chamado de Itaim-Bibi, para distinguí-lo de outro bairro com o nome de Itaim Paulista). Além de brincar na rua, também freqüentava o Parque Infantil, ou seja, a pré-escola municipal – da qual me lembro da gangorra e da merenda à base de leite e pão com goiabada – e, mesmo antes de aprender a ler, a Biblioteca Infantil, para jogos de salão e as sessões de cinema às quintas-feiras: Os Três Patetas, Gordo e Magro, Roy Rogers, Tarzan e Oscarito e Grande Otelo eram os filmes habituais, numa época em que o cinema nacional era feito sobretudo dessas comédias-pastelão.
Esse era o lado risonho de uma existência bem mais dura, posto que meus pais, ambos com primário incompleto, não tinham condições de assegurar sequer o mínimo para manter o lar, então uma modesta casinha com dois cômodos nos fundos de um terreno relativamente grande para os padrões de renda que eram os nossos. Aliás, falar de renda seria um exagero, pois que os ganhos conjuntos de meu pai, um modesto motorista de entregas numa torrefação de café, e os de minha mãe, como lavadeira “para fora”, certamente não alcançavam para todas as necessidades da casa. Eu e meu irmão Luiz Flávio tivemos portanto de trabalhar, desde muito cedo, primeiro recolhendo restos de metal nos fundos de uma fábrica – para revendê-los ao ‘ferro-velho’ –, depois como pegadores de bolas de tênis no Clube Pinheiros, mais adiante como empacotadores à base de gorjetas no supermercado Peg-Pag; lembro-me da lanchonete de estilo americano na esquina do comércio, da qual eu cobiçava (sem ter dinheiro para comprar) sobretudo os sundays e os banana-splits.
Ao aprender a ler, na tardia idade de sete anos, pude finalmente começar a freqüentar de verdade a Biblioteca Infantil Anne Frank, onde devo ter passado o essencial de minha infância e pré-adolescência: deixando os jogos de lado, eu ficava o tempo todo na sala de leitura, de onde também retirava, dia sim, dia não, dois ou três livros para continuar a leitura em casa, de noite, deitado na cama, à contra-luz; Monteiro Lobato, obviamente, e tudo o mais que me interessasse. Farei, em outro depoimento, a relação de minhas leituras juvenis, mas não poderia deixar passar o História do Mundo para as Crianças, adaptado por Monteiro Lobato de uma edição americana, um livro que foi verdadeiramente decisivo em minha formação e em minha orientação para os estudos humanísticos: devo tê-lo lido várias vezes, pois que, ao entrar para o Vocacional, eu era um “craque” – segundo a gíria da época – em todas as fases da História, da antiguidade à era moderna e mais além.

A Grande Transformação
Terminando os estudos primários na Escola Pública Municipal Aristides de Castro, a dez minutos de caminhada de casa, ainda fiz um “quinto ano” – que não era obrigatório, e muitos alunos de minha condição deixavam então o ensino formal – na mesma escola, sendo esse o caminho de “admissão” (o nome alternativo desse ano suplementar) para os estudos ginasiais, ou seja, o começo do segundo ciclo no Brasil, nessa época composto de “ginásio” e “colégio”, a última fase antes do terceiro grau.
Ninguém na minha família estendida tinha chegado então ao segundo ciclo e a opção que se apresentou aos meus pais foi a de uma escola técnica, para me dar de imediato uma formação profissional, uma inserção direta na vida ativa, com menos de 14 anos. Lembro-me de ter visitado, com minha mãe, uma escola de artes industriais do sistema Senai, com a intenção de uma possível inscrição no curso de marcenaria, a “profissão” que mais me seduzia no universo provável das modestas possibilidades de uma família sem recursos próprios da periferia de São Paulo.
Não me lembro bem agora exatamente por que, talvez porque não houvesse vagas no curso de marcenaria para mim, uma alternativa se abriu vinda de não sei bem onde, provavelmente um anúncio de jornal: a outra opção seria tentar uma aprovação em concurso para um novo tipo de ensino que estava sendo inaugurado pelo governador de São Paulo, Carvalho Pinto, os ginásios vocacionais, cinco ao todo no estado de São Paulo. A seleção era rigorosa, envolvendo provas em várias matérias e entrevistas, nas quais devo ter tido um bom desempenho (sinceramente não me lembro dessa parte), posto que fui imediatamente chamado para a inscrição.
O “problema” que então se colocou era de ordem financeira, ou talvez, mais exatamente, orçamentária: esse ginásio inédito exigia freqüência integral, em lugar das três ou quatro horas dos ginásios tradicionais, o que colocaria minha família em “dificuldades”. Com efeito, os modestos aportes meus e de meu irmão, em nossas atividades “pecuniárias”, faziam parte integral do orçamento do lar, e minha retirada do “mercado de trabalho” provocaria um déficit primário nos seus recursos líquidos. A “grande transformação” em minha vida foi representada pela decisão familiar de que o garoto de doze anos recém completados que eu era, merecedor pelo sucesso na seleção, seria dispensado dos trabalhos remunerados para seguir quase integralmente a via dos estudos de segundo ciclo, de certa forma um “privilégio de classe”. Foi, provavelmente, o tournant mais importante dessa fase juvenil e para o resto da vida.
Quando digo “dispensado de trabalhos remunerados”, isso não é totalmente correto, posto que continuei, aos sábados pelo menos e provavelmente aos domingos também, a empacotar compras no supermercado Peg-Pag, praticamente durante todo período de estudos ginasiais. Quando se vem de uma família extremamente modesta como era a minha, nenhum aporte é dispensável para o mínimo de conforto de que desfrutávamos. Não tínhamos, obviamente, nem televisão, nem telefone em casa, se tanto um aparelho de rádio, o que de certa forma deve ter contribuído para meus hábitos de leitura intensa e, certamente, aplainou facilmente meu ingresso tranqüilo na seleção dos vocacionais.

Finalmente, o Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha
Aos doze anos, com uma grande “cultura histórica universal” – especialmente na antiguidade egípcia e grega clássica –, eu dispunha, no entanto, de escassa cultura política brasileira contemporânea, e não tinha a menor idéia de quem fosse Oswaldo Aranha, que não podia, assim servir de premonição para a minha carreira futura na diplomacia. Minha entrada no Vocacional Oswaldo Aranha representou, sem qualquer sombra de dúvida, a mais importante ‘ascensão social’ em minha vida, antes do próprio ingresso na carreira diplomática, constituindo, portanto, uma espécie de ruptura entre o passado modesto, numa família de classe média baixa (provavelmente menos do que isso), e um futuro então em construção e largamente indefinido.
Talvez não tenha sido uma ruptura consolidada, pois que me lembro de que, em certas fases, minha mãe cogitou de me tirar do Vocacional para me colocar num ginásio tradicional, como meu irmão maior, por razoes sempre pecuniárias: não apenas eu não contribuía mais para o orçamento da casa, como passei a representar um ‘peso’, posto que o Vocacional tinha grandes exigências em se tratando de material de estudo e de atividades extra-classe (pagamento de ônibus de viagem, dinheiro de bolso para essas saídas etc.). Todos os meus colegas, com pouquíssimas exceções, eram de famílias de classe média, algumas até abastadas, o que era visível em traços exteriores – a despeito do uniforme e da democracia ambiente – e nas referências às compras, aos objetos pessoais, aos filmes e discos. Também tínhamos essas festinhas de fim de semana, nas casas de colegas, animadas a Cuba Libre (rum com Coca-Cola, para os mais jovens) e Hi-Fi (vodka com Fanta), música dos Beatles naquelas ‘bolachas de vitrola’ (acho que muita gente hoje não tem idéia do que seja). Eu freqüentava todos os eventos, mas por vezes não tinha condições de pagar toda a programação escolar, ou convidar de volta os colegas de classe, para uma casa que nunca teve ‘vitrola’ nem bebidas daquele tipo, sequer sala ou garagem para os bailinhos.
Tirante esses ‘constrangimentos’ – os do próprio ginásio resolvidos muito amigavelmente com a ajuda da psicóloga Gloria Pimentel e da pedagoga Olga Teresa Bechara –, o Vocacional representou uma das mais vibrantes aventuras intelectuais de minha vida, talvez a mais importante que um jovem como eu poderia esperar receber de uma instituição de ensino. Para ser mais exato, tenho certeza de que seguiria, de qualquer forma, uma carreira ‘intelectual’, posto que desde o primeiro momento que me aproximei dos livros, fui fisgado pelo seu extraordinário poder de sedução e nunca mais consegui me desvencilhar do feitiço que eles carregam. Mas, a passagem por um ginásio tradicional ou o desvio para uma escola técnica provavelmente me fariam perder anos de ensino excepcional e me retirariam a motivação para perseguir o que sempre gostei de fazer: ler (todo tipo de leitura), escrever (sempre), pesquisar e, se possível, publicar os meus textos. Com o Vocacional, eu fiz tudo isso; sem ele, eu teria tido menos chances, se alguma, de avançar nos meus objetivos.

O que o Vocacional tinha de diferente?
Antes de tudo, uma educação humanista, no sentido mais renascentista do termo. Em segundo lugar, professores especialmente preparados e motivados para essa experiência inédita no Brasil, uma metodologia radicalmente inovadora de ensino, envolvendo os estudantes e os professores num aprendizado integral. Em terceiro (e mais importante) lugar, concepções pedagógicas revolucionárias quanto ao relacionamento entre mestres e alunos.
Passávamos todo o dia no ginásio, às vezes mais do que isso, com as freqüentes visitas e saídas em trabalho de grupo, no município, no estado, no Brasil. Tivemos visitas recíprocas entre os ginásios vocacionais de São Paulo, aliás, os únicos do Brasil, e aprendemos a fazer pesquisa sobre a comunidade, sobre o meio geográfico, sobre as historias respectivas. Foi no Vocacional que eu comecei a manipular “instrumentos de adultos”, como a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e outras ferramentas especializadas. Foi o Vocacional que nos levou, garotos de 13 ou 14 anos, ao encontro de professores da USP, como Sérgio Buarque de Holanda, Ulpiano Bezerra de Menezes e vários outros. No Vocacional adquiri consciência do mundo: lembro-me perfeitamente de uma palestra com Oliveiros da Silva Ferreira, quem primeiro informou-me sobre a crise dos foguetes em Cuba e o bailado sinuoso da geopolítica bipolar e do equilíbrio do terror pelas armas nucleares das duas super-potências.
Foi a partir do Vocacional que adquiri independência e disposição para me aventurar sozinho pelo mundo, quando a ocasião se apresentou ou quando a necessidade se impôs. O Vocacional completou a “minha formação” de uma maneira que nenhuma outra instituição poderia ter feito, nem jamais conseguiu fazer novamente, depois do desmantelamento do sistema vocacional no seguimento do Ato Institucional n. 5 e a prisão de sua grande promotora, inspiradora e diretora, Maria Nilde Mascellani. Eu também fiquei diferente no Vocacional. Do garoto brincalhão, mas introspectivo e leitor compulsivo, tornei-me um adolescente desinibido, participante e continuei um leitor compulsivo. O Vocacional manteve isso...
Não posso dizer que eu tenha me aborrecido um só dia no Vocacional, ao contrário: todos os dias tínhamos algo novo no ginásio, uma atividade diferente, uma nova parte do programa, o calendário a ser seguido, mas sempre com alguma surpresa no caminho. Fiz excelentes amigos no Vocacional, que conservo até hoje, a despeito mesmo de ter “desaparecido” do Brasil um pouco depois de terminar o colegial e de ter ingressado na Faculdade, e de ter desaparecido no mundo por muitas décadas depois disso. Não vou mencionar meus amigos mais chegados, para não cometer injustiça com ninguém, mas lembro-me de ter iniciado a redação de um romance de aventuras para jovens – do mesmo tipo dos que eu lia naquela fase – com dois deles, que permanecem meus amigos até hoje.
Lembro-me também de muitas aulas, em especial daquelas que mais me prendiam pelo seu conteúdo, já totalmente identificado com minhas afinidades eletivas por toda a vida: eram duas, as de geografia com Dona Odila, as de História com a Professor Terezinha. Em contrapartida, as aulas de Matemática, com a Professor Lucila Bechara, irmã de Olga, sempre me deixaram inconfortável, e até hoje mantenho uma distância respeitosa da matéria (o que não deixo de lamentar, pois a matemática é a base de todo pensamento rigoroso, em especial na economia). As aulas de Educação Física podiam ser agradáveis quando se tratava de jogar handball, com o Professor Frank, mas a ginástica nunca me encantou muito. Mas, tínhamos aulas de tudo o que se podia imaginar numa escola “normal” e muitas outras coisas mais: Artes Plásticas, Artes Industriais, Musica, Economia Doméstica e outras ainda de que nem me lembro. Um depoimento decente de alguém lembrará isso por mim.

Permaneci no GEVOA de 1962 a 1965, anos bastante conturbados no Brasil, quando tomei conhecimento, e consciência, dos problemas do país de uma forma provavelmente menos maniqueísta do que em outras instituições. Creio que sai algo “esquerdista” de lá, como aliás correspondia à juventude progressista de então, no meu caso propensão ainda reforçada pelo fato de minhas origens ditas ‘populares’ e supostamente inclinada a contestar um sistema injusto, feito de exploração capitalista e de dominação imperialista, que convinha acabar, segundo um modelo não muito diferente do que vigia em Cuba.
Quando segui para o “clássico”, no Colégio Estadual Ministro Costa Manso, bem mais próximo de casa do que o Vocacional, comecei imediatamente a participar das passeatas e manifestações contra a ditadura militar e o imperialismo estrangeiro, uma transição quase natural para quem tinha sido educado num ambiente de diálogo e até de contestação às idéias estabelecidas. Também comecei a ler toda a literatura engajada que fazia parte dos currículos oficial e não oficial das faculdades de ciências sociais, autores dos quais eu já tinha ouvido falar no Vocacional, alguns até presentes em minha biblioteca pessoal, que começava então a crescer. Nesses anos, de 1966 a 1968, estudando a noite e trabalhando de dia no centro da cidade, eu freqüentava as bibliotecas Mario de Andrade, municipal, a universitária da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a corporativa do Centro das Indústrias de São Paulo, e as bibliotecas americanas da USIA, no Consulado americano da Avenida Paulista, e do Centro de Estudos Brasil-Estados Unidos (Cebeu), e poderia facilmente citar de memória muitos livros que retirei em cada uma dessas bibliotecas.
O Vocacional me tinha preparado para ler literatura de nível universitário numa idade muito precoce e, mais tarde, quando entrei para o curso de Ciências Sociais da USP, eu já conhecia, em grande medida, os autores compilados na bibliografia de referência, pelos menos os brasileiros. Eram os mesmos de que nos falavam os professores no ginásio e isso me foi especialmente gratificante no plano intelectual. Não creio que qualquer outra escola, pública ou particular do ciclo ginasial, teria permitido a um jovem como eu, vindo de uma família que praticamente não dispunha de livros em casa, um contato tão intenso com os mestres das ciências sociais brasileiras, em especial com os gurus da chamada Escola Paulista de Sociologia.

Eu sinceramente lamento que muitos dos papeis acumulados nesses anos de estudos secundários tenham sido perdidos quando de minha partida apressada para a Europa, nos tempos mais duros da ditadura militar no Brasil, da qual eu fui um dos muitos opositores frustrados com nossa incapacidade organizacional em derrubá-la. Provavelmente foi melhor assim, pois já nessa época, nossa adesão ao socialismo e oposição à “democracia burguesa” não prenunciava nada de bom para o futuro do Brasil (mas isso eu só vim a constatar alguns anos mais tarde).
Lamento também que muitos dos escritos dessa fase juvenil tenham sido perdidos, quando foi no Vocacional que “publiquei” meus primeiros artigos. Felizmente, uma reunião de vários colegas dessas primeira turma, em 2004, me permitiu recuperar uma poesia ingênua, dessa fase – não exatamente publicada, apenas redigida no “caderno de lembranças” de uma colega de classe –, e dois textos minúsculos que saíram no jornalzinho dos alunos, um deles comemorando a vitória das ‘meninas’ do handball contra uma equipe adversária de outro ginásio da região. Talvez não seja o caso de refazer minha lista de publicados, para retroceder vários anos na recuperação desses textos de jornalista amador, mas certamente é um motivo de orgulho ter podido encontrar um espaço totalmente livre, no Vocacional, para realizar os primeiros exercícios de um talento que imagino ter conservado até hoje: a capacidade de observar a realidade, redigir algo compreensível em torno disso e ver o texto publicado e divulgado para um público mais amplo.
Enfim, o Vocacional foi uma escola de verdade, uma escola completa, no mais puro sentido dessa palavra; ao ginásio devo alguns dos momentos mais felizes de minha vida, um oásis de inteligência e cordialidade, num ambiente de convivência totalmente aberta e sincera, num momento em que o Brasil descia na escala da convivência democrática. Foi uma das fontes de meu enriquecimento intelectual e a ele devo muito do que me tornei na vida adulta e do que sou ainda hoje.

Que diferença faz uma escola!
E a diferença foi o Vocacional...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de janeiro de 2010.

sexta-feira, janeiro 01, 2010

29) Memórias Intelectuais

Uma biografia das ideias que permearam a minha vida
Paulo Roberto de Almeida
Concepção e primeira redação em 18.10.2009 (numa dessas noites de insônia)
Revisão: 22.12.2009

Uma pequena introdução que se poderia chamar de metodológica
Comecei a conceber a redação destas “memórias intelectuais” numa dessas noites de insônia que me acontecem frequentemente. Não que eu seja um insone ou que tenha dificuldades para dormir, ao contrário: como estou sempre lendo, ou escrevendo, no limite de minhas possibilidades físicas, quando vou dormir já estou dormindo em pé, ou sentado em frente ao computador, não sendo raro que eu cochile quase em cima do teclado, abatido pelo cansaço do dia, das muitas leituras, da fadiga visual em face da tela, da falta de sono enfim. Quando vou para a cama, portanto, caio como uma pedra e durma apenas o suficiente, pois necessariamente tenho de acordar antes de ter feito o ciclo completo de sono, antes de gozar daquele sono reparador que todos os médicos recomendam, seja porque tenho de trabalhar, seja porque tenho de dar aulas, o que para mim não é exatamente o mesmo que um trabalho, e sim o equivalente de um hobby, uma atividade que assumo voluntariamente, mais por prazer do que por necessidade.
Ocorre porém que, em algumas ocasiões, eu não consigo pregar o sono de imediato, seja porque minha cabeça fervilha com novas ideias adquiridas ao sabor das leituras cotidianas, seja porque algum outro problema perturbou o meu sono, apenas algumas horas depois de tê-lo iniciado.

Pois aqui estou eu, tentando dar início a uma nova obra que vai, provavelmente, ocupar outras noites de insônia ao longo dos próximos meses e anos à frente, na redação paulatina, gradual, lenta e necessariamente interrompida do que eu chamei de “memórias intelectuais”, que nada mais são, como indica o subtítulo, do que uma história das ideias que permearam a minha vida. Por que isso? Por que esse título e não uma simples biografia ou memórias de vida, como todo mundo faz? Já explico.
Como qualquer leitor contumaz, também li muitas histórias de vida: grandes e pequenas biografias, autobiografias, relatos de vidas de homens (e mulheres) famosos, extratos de aventuras fabulosas (algumas verdadeiras, outras semi-inventadas), notas pessoais, currículos, enfim, uma variedade de escritos pessoais que sempre me interessaram mais pelo lado das ideias do que propriamente pelos feitos ou eventos. Sou assim, fascinado pelas ideias e pelos processos mentais, mais até do que pelos feitos e acontecidos. Interesso-me particularmente pelas reflexões e elaborações mentais dos homens (e mulheres, para não deixar de ser politicamente correto) que representaram alguma importância na história da humanidade. Lembro-me de ter lido, ainda em minha infância ou primeira adolescência, diversas biografias de grandes homens (e algumas mulheres) de autores como Hendryk Van Loon, Stefan Zweig, Monteiro Lobato (este mais um adaptador, do que um verdadeiro biógrafo) e vários outros autores.
Nunca imaginei, pelo menos até alguns anos atrás, escrever minha própria biografia, e continuo achando que não tenho nada de particularmente interessante a dizer em matéria de relato de vida: a minha não foi suficientemente relevante no plano nacional, ou interessante no plano individual, para merecer uma biografia no sentido clássico, inclusive porque não sou um homem de grandes realizações práticas ou de qualquer impacto na vida nacional. Tampouco prestei depoimentos, até o presente momento, nem jamais mantive diários ou anotações regulares quanto a minhas atividades e ocupações. Sou, sim, um homem de leituras e de anotações, mas isso de livros, basicamente, o que faço de forma totalmente desorganizada e anárquica – o que parece redundante, mas não é – sem qualquer preocupação com o ordenamento sistemático dessas notas ou seu alinhamento cronológico. Simplesmente, me interesso por tanta coisa, e leio tantos livros diferentes, que sempre me foi impossível manter uma linearidade nas anotações de maneira a sustentar qualquer relato ordenado sobre a minha vida, se ela fosse relevante, ou sobre as minhas ideias, se por acaso eu tivesse um punhado delas representativa de alguma grande “filosofia” particular, o que obviamente não é o caso. Meu anarquismo literário e redacional nunca me permitiu manter notas organizadas o suficiente para escrever o que se chama classicamente de biografia, ainda que de simples ideias.
Por que, então, me permito chamar estas minhas anotações de “Memórias Intelectuais”, um título aparentemente prometedor e, ao mesmo tempo, enganador? Não sou um intelectual, pelo menos não oficialmente: não me reconheço como tal, e não creio que eu seja conhecido como tal. Sou simplesmente um homem de leituras e de escritos, os mais diversos, tocando um pouco em todas as áreas das humanidades, o que faço mais de metido do que de sabido. O adjetivo “intelectuais” apegado ao substantivo memórias quer dizer simplesmente que este meu relato não é de vida, propriamente, nem de eventos ou de processos reais que aconteceram comigo, mas sim de elaborações mentais, de ideias, como aliás confirmado pelo subtítulo, como já escrevi acima. Ou seja, eu pretendo, sobretudo, tratar das ideias que eu defendi, que eu “freqüentei”, que permearam a minha vida ao longo de cinco ou seis décadas (dependendo de quando se deve começar a contar minha vida “intelectual”).
Não são todas ideias minhas, está claro, e sim ideias que movem o mundo, como já disse, a propósito de um livro seu, o historiador Felipe Fernandez Armesto (ver o seu Ideas That Changed the World, publicado em 2003, um livro que já resenhei, em sua edição brasileira). São, especialmente, ideias que movimentaram o meu mundo, ou que pelo menos influenciaram a minha formação, o meu pensamento, e algumas das minhas ações (sim, também as houve, e as relato aqui, conforme apropriado, mas sem muita ênfase, preferindo ficar mesmo no terreno das ideias). Não sei se sou um homem de ideias, mas sou, sim, um homem que viveu com ideias, para ideias e em função de ideias, embora (pelo menos acredito) sempre com um sentido prático, isto é, sempre com a intenção de colocá-las em “funcionamento”, ainda que poucas tenham de verdade “funcionado”. Isso nunca me deixou frustrado, ao contrário, pois eu atribuo às ideias as mais importantes transformações do mundo, ainda que nem todas tenham tido esse poder. Vale uma pequena elaboração a esse respeito, o que faço agora, à maneira de parênteses.

O mundo, na concepção marxista e materialista – à qual eu aderi, voluntária e conscientemente, por boa parte de minha juventude e da vida adulta – é movido por forças materiais, por processos objetivos, que emergem do entrechoque de interesses sociais (de classe, obviamente) e do confronto entre relações sociais, algumas decadentes, outras, as vencedoras, avançadas, ou correspondendo a uma etapa superior das forças produtivas. No máximo os homens são prisioneiros de ideias do passado, segundo a fórmula de Marx no Dezoito Brumário. Keynes também disse algo semelhante, a respeito de ser a geração atual (qualquer uma) prisioneira de economistas mortos, o que se aplica perfeitamente ao seu próprio caso e à geração atual, ainda presa às suas ideias dos anos 1930, ou seja, de duas gerações passadas.
As ideias são algo importante, e coisas vivas, no entanto. São elas que dão sentido à nossa existência consciente, são elas que guiam as nossas ações, são elas que nos impelem a novas aventuras do espírito ou empreendimentos práticos, são elas, finalmente, que sustentam a defesa de alguns princípios e valores que julgamos relevantes, seja para a “economia política” de nosso comportamento, seja para a elaboração de algum julgamento moral sobre nossas próprias ações e as dos outros. Ideas do matter, dizem os ingleses, ou americanos, whoever... As ideias têm importância, e elas tiveram uma tremenda importância em minha vida, toda ela feita de leituras, reflexões, escritos e debates em torno de ideias, todas elas, as minhas, ou seja, as que eu adquiri com leituras ou pessoas mais espertas, as emprestadas ocasionalmente, as dos outros, com as quais eu poderia concordar, ou não, assim como ideias que eu já defendi e que depois vim a recusar, até mesmo rejeitar, e que passei a combater, como foi o caso com boa parte de minha formação intelectual marxista da primeira juventude (depois explico como foi isso).
Não tenho nenhum problema em aceitar, confessar, reconhecer essa mudança de ideias, de percepções, de atitudes em minha vida juvenil e adulta, posto que a vida é um processo continuo de incorporação de novas ideias, de sua submissão aos testes da lógica formal e da realidade, e da sua sustentação ou rejeição em função dos resultados desses “testes”, que nada mais são do que experiências de vida, novos aprendizados, incorporação de conhecimentos, aceitação de novos princípios e fundamentos para a ação social. Repito aqui o que Keynes parece ter dito, uma vez, a um interlocutor que o acusava de ter mudado frequentemente de ideias: “sim, eu mudo de ideias cada vez que muda a realidade; e você, o que faz?”

Este livro, portanto, não se ocupa apenas de minhas ideias, ainda que seja difícil distinguir o que é meu e o que pertence aos seus autores originais, na minha incorporação particular, individual, das ideias que li ou ouvi ao longo de uma vida extremamente bem recheada de leituras e de palestras, a que assisti ou de que participei, interagindo com membros da mesa ou com o público inquisidor (sim, sempre acreditei que aprendemos muito com nossos interlocutores, mesmo os que nos contestam, como ocorre ocasionalmente com alguns alunos e mais frequentemente com outros debatedores). São ideias que “estavam no ar”, que eu peguei, usei, transformei, reelaborei, introduzi em novas ideias que eu mesmo possa ter elaborado e que sai por aí, distribuindo à vontade, em meus escritos, aulas e palestras. Fiz isso durante toda a minha vida adulta, seja na profissão diplomática, seja nas lides acadêmicas, assumidas em caráter voluntário e em tempo parcial durante quase todo o tempo em que fui diplomata de carreira.
Sim, sou daqueles que acreditam e defendem ideias próprias, mesmo trabalhando numa corporação de ofício, a casta dos diplomatas, que tem algo de Vaticano em sua maneira de ser e em sua forma de proceder. Na veneranda Casa que foi minha durante várias décadas, um funcionário subalterno é suposto acatar ideias dos superiores, quando não defendê-las como se fossem suas. Consoante meu espírito anarquista e libertário, eu nunca fiz isso, jamais; sinceramente não me lembro de ter alguma vez acatado, em sã consciência ideias “superiores” apenas porque elas emanavam dos semi-deuses que nos governavam, quando eu era secretário: conselheiros, ministros, embaixadores. Sempre formulei alguma observação, seja para assinalar minha concordância (quando eu efetivamente concordava com o que estava sendo exposto), seja para argumentar em algum outro sentido (quando eu tinha alguma objeção de princípio ou alguma observação tópica a fazer a respeito do assunto em pauta). Nunca fui daqueles que quando parte para o trabalho deixa o cérebro em casa, ou deposita a sua capacidade de reflexão na portaria, ao adentrar no serviço: sempre levei comigo minha disposição a pensar com minha própria cabeça e a levantar elementos factuais ou argumentos opinativos, sempre quando o tema tratado me parecia padecer de alguma inconsistência formal ou de deficiência substantiva. Nunca tive qualquer hesitação em contestar chefes ou outros superiores em reuniões de trabalho, acumulando com isso (pelo menos suspeito) sólidas inimizades ao longo da carreira (não de minha iniciativa, mas provavelmente da parte dessas personalidades contestadas, que provavelmente nunca toleraram a arrogância desse mero secretario ou conselheiro que ousava discordar de suas brilhantes ideias e propostas).
Sou assim, e não me escuso de sê-lo, pois acredito que devemos ser, publicamente, como somos na intimidade, ou seja, nos comportar exatamente como comandam nossos instintos, modo de ser, vocação inata. Eu nasci para ser um leitor, um “absorvedor” e um processador de ideias, e tendo a expressar as minhas, conforme julgo apropriado ou oportuno. Se os demais, os superiores, não concordam com elas, não me importo minimamente, pois considero que num mundo de ideias, como o que vivemos, devemos sempre lutar para que as boas ideias prevaleçam sobre as más, ou inadequadas. Não sou, nem me considero, um “salvador” da humanidade, pelas ideias ou pelas ações, mas considero, sim, que a humanidade pode e deve avançar pela defesa das boas ideias, pela sua prevalência sobre as más, ou negativas, pela promoção das soluções “corretas” aos enormes problemas da humanidade, de pobreza, de desigualdade, de injustiça, de infelicidade. Sim, também tenho esse lado um pouco milenarista ou messiânico de pretender “melhorar” a humanidade pela ação consciente dos homens de bem, dos cientistas, dos engenheiros, dos humanistas, que buscam algo mais na vida do que o simples prazer pessoal ou a satisfação individual. Considero-me comprometido com uma causa superior, que é, em primeiro lugar, a elevação espiritual, ou “mental”, da humanidade, base indispensável para sua elevação material, ou para a busca incessante de melhores padrões de vida para o maior número.
Talvez seja esse o legado de meu passado socialista ou marxista: pretender “melhorar” a humanidade, ainda que eu tenha há muito desistido de qualquer projeto de “engenharia social”, ou seja, a pretensão de mudar os homens para mudar a sociedade, como ocorreu na triste história do socialismo real ao longo do século 20. O “homem novo” deve ser simplesmente construído em nível individual, pela educação de qualidade, livre, diversificada, totalmente liberta de qualquer crença fundamentalista – como o marxismo esclerosado, por exemplo – e não imposto por qualquer programa de “reeducação social” mediante projetos autoritários de transformação social, como os conhecidos nessa triste experiência político-messiânica. Dessas ideias eu creio que me libertei, a partir da juventude tardia e da entrada na etapa adulta de minha vida, ainda que eu não tenha conseguido me libertar desse ideia básica de pretender promover o “bem comum” e a “felicidade dos povos” (mas, aqui e agora, sem qualquer sentido autoritário ou mandatório). De todas as minhas visitas e experiências no socialismo real – o que poucos intelectuais do mundo capitalista realmente fizeram – retirei a certeza de que o sistema criado pelo partido de vanguarda trouxe mais infelicidade do que bem-estar aos povos que pretendeu transformar, e nem sempre num sentido meramente material, de disposição de bens correntes; no mais das vezes, a miséria moral e a degradação dos indivíduos foram bem mais relevantes do que a penúria de bens e serviços.

Creio que os parágrafos acima já oferecem um resumo do que são as ideias que pretendo discutir neste ensaio de biografia intelectual, basicamente uma historia das ideias para consumo próprio, uma espécie de balanço de uma vida de leituras, de reflexões e de escritos, que foi tudo o que me foi dado fazer ao longo de uma carreira diplomática e acadêmica sem muitas emoções ou grandes acontecimentos. Talvez as poucas ideias aqui contidas possam servir de motivo de reflexão aos mais jovens, aqueles que como eu começam ou começaram a sua vida cheios de entusiasmo juvenil por grandes projetos de transformação do Brasil e do mundo. Eu fiz a minha parte, tentei, sim, transformar o Brasil – nem sempre no bom sentido, confesso, como quando pretendia fazer do país uma economia socialista, seguindo o exemplo cubano – e tentei, depois, ajudar na transformação do mundo, seja como diplomata, seja como professor, seja ainda como autor de alguns escritos que podem ter influenciado a formação de alguns poucos jovens que tiveram contato com esses escritos.
Uma coisa é certa: ainda que eu possa ter errado algumas (ou muitas) vezes, eu sempre tentei ser honesto comigo mesmo e com as ideias que estavam à minha disposição, ou seja, ao usá-las de modo racional e sempre visando ao bem comum. A honestidade intelectual não é apenas uma virtude, para mim, mas uma necessidade imperiosa, uma condição inseparável de minha personalidade e disposição de vida. Nunca consegui defender ideias nas quais não acreditava, nunca fui hipócrita no trabalho diplomático ou acadêmico, sempre defendi (e expressei) o que pensava, mesmo ao risco de prejuízos materiais ou morais. Nunca me escondi atrás de “falsas ideias”, apenas para contentar um superior ou sugerir uma ilusória concordância intelectual com quem quer que seja na academia, e por isso mesmo devo ter granjeado inimizades e criado alguns problemas para mim mesmo, aqui e acolá. Isso nunca me importou: sempre preferi estar em paz com minha consciência do que ganhar algum favor de um superior por submissão a ideias que não defendo ou que rejeito. Nunca fui carreirista, numa ou noutra “profissão”, aliás, nunca me classifiquei apenas como diplomata ou como acadêmico; sempre disse que eu era diplomata, ou professor, mas em meus escritos e palestras eu me apresentei sempre como sociólogo ou “doutor em ciências sociais”, conforme o caso, o que são títulos, não condições profissionais. Acho que nunca escrevi como diplomata – ou seja, a langue de bois, ou o bullshit, típicos da profissão e da linguagem diplomática – e tampouco me comportei como acadêmico, ou seja, apenas um pesquisador ou professor de uma instituição de ensino e pesquisa.
Sempre fui um ser livre, tanto quanto me permitiram minha condição de servidor público e de contratado de uma instituição de ensino, ou seja, cumprindo minhas obrigações mínimas, mas me reservando o direito de pensar com minha própria cabeça e de expressar o que me ia na cabeça, por vezes de forma algo agressiva, reconheço. Mas é porque o meu entusiasmo pelas ideias, meu cuidado em recolhê-las dos livros e colocá-las à disposição dos demais, meu empenho em “ensinar” aos outros as “boas ideias” são tais que em algumas (ou varias) ocasiões eu acabei me chocando com ideias antigas, conservadoras, inadequadas, incorretas, francamente equivocadas. Isso seria porque minhas ideias eram melhores do que as dos outros? Talvez, e aqui confesso algum orgulho de estar um pouco à frente de meus contemporâneos, exclusivamente em função de minha obsessão pela informação, pelo conhecimento, pela argumentação lógica e bem fundamentada. Sim, eu me impaciento com a lentidão de algumas pessoas (talvez a maioria) em perceber a realidade, que está ali, à disposição de quem quer ver, bastando se informar corretamente – mas a maioria das pessoas lê pouco e se informa de maneira deficiente – e refletir com base em preceitos mínimos da lógica formal e da argumentação bem sustentada. Não tenho culpa se sempre tive mais informações do que a média de meus colegas de trabalho e de academia: isso foi alcançado ao custo de muito sacrifício, de muitas noites de leitura, de muito esforço em buscar e apreender os dados da realidade. Como estou fazendo agora mesmo, neste momento de reflexão e de registro de minhas memórias intelectuais. Mas, encerro no momento, pois já são 9h25 de uma manhã de domingo, e eu vou dormir um pouco antes de retomar minhas leituras e lides acadêmicas um pouco mais tarde. Boa noite (ou bom dia).

Brasília, residência da SQS 213, 18.10.2009
Início: 6h37 da manhã; interrupção: 9h25.
Revisão: 22.12.2009