quinta-feira, dezembro 31, 2009

28) "Todo ano ele faz tudo sempre igual..."

Pequeno balanço de 2009 e projetos para 2010 (para variar)
Paulo Roberto de Almeida

OK, ok, como naquela canção muito conhecida, eu sei que todo final de ano é sempre a mesma coisa, mas tampouco tenho culpa se o calendário tem sempre a mesma forma e se os rituais humanos e sociais se repetem com inevitável constância e regularidade (aliás esperadas). Não tem jeito de escapar: chega dezembro e as festinhas de confraternização se multiplicam nos ambientes de trabalho (cada vez mais cedo, diga-se de passagem), todas com a inevitável troca de presentes a preço reduzido do sistema de amigo secreto, os cartões despachados às pressas (alguns amigos esquecidos), providências de última hora para as festas de fim de ano, shoppings e parkings lotados de gente e de carros, todo mundo fazendo tudo sempre igual, exatamente aquilo que você mesmo está fazendo, comprando os últimos presentes de última hora e prometendo a si mesmo que daqui para a frente tudo será diferente, que no próximo final de ano você não deixará tudo para a última hora...
Ufa! Felizmente já passaram todas essa festas, e aqui estamos fazendo a mesma coisa que no ano passado, talvez com um pouco mais de cansaço e um pouco mais de cintura: barriga cheia (com a minha bacalhoada), espírito ‘arejado’ pelo vinho ou pela cerveja, cabe agora recapitular tudo o que se fez em 2009 e pensar em tudo o que se pretende fazer em 2010. Vejamos, portanto, o que eu teria a dizer sobre 2009 e o que eu teria a dizer sobre 2010 (que já não tenha sido dito pelos videntes profissionais ). Bem, como este texto é narcisisticamente voltado para a minha própria produção, cabe antes de mais nada retomar o balanço que eu já havia feito um ano atrás, mais precisamente num dos últimos posts de 2008, em dois de meus blogs (ver: “Um balanço de final de ano, com alguma explicação para tal”, 31.12.2008; (1) Diplomatizzando; (2) DiplomataZ).

À diferença de 2008, quando eu estava dubitativo sobre meus projetos profissionais e acadêmicos – não exatamente por falta de emprego ou por falta do que fazer, ao contrário –, tenho agora o ano todo de 2010 repleto de tarefas e programações. Pretendo passar boa parte do ano conhecendo a China e partes da Ásia oriental; talvez eu até mesmo escreva um livro sobre essas paragens que hoje são para mim relativamente desconhecidas (mas já venho estudando sobre elas desde agora e até comecei um novo blog). Com efeito, se não acontecerem novas surpresas – na minha profissão, e nas atuais circunstâncias políticas, tudo é possível – devo partir para Shanghai em março de 2010, atuando durante seis meses como diretor do pavilhão do Brasil na Exposição Universal que se realiza na grande metrópole chinesa de maio a outubro.
Não posso reclamar: a China é ‘o’ país, ou talvez, ‘o’ continente, e é lá que as ‘coisas’ estão acontecendo (pelo menos no terreno econômico, já que no domínio político a velocidade é outra, bem mais lenta). Uma vez na China, contudo, o problema, justamente, vai ser manter o blog atualizado, tendo em vista a nova “muralha da China” erguida pela grande autocracia asiática em torno da internet, sem mencionar o bloqueio praticamente intransponível que se abateu sobre os blogs, em particular (não consegui acessar nenhum dos meus, enquanto lá estive recentemente); não tenho certeza de que com o uso de proxys ou de servidores virtuais conseguirei contornar as barreiras e os filtros que o Big Brother mandarim instalou em todo e qualquer sistema de acesso à rede mundial de computadores a partir do país.

Antes de tratar do futuro, contudo, cabe registrar antes de mais nada o que foi realizado em 2009. No terreno ‘volumétrico’ da produção acadêmica não posso reclamar: comecei o ano pelo trabalho n. 1970 (uma coleção de ensaios sobre a globalização e a antiglobalização, a que dei o título de Globalizando) e estou terminando 2009 com este aqui, que leva o n. 2078. Foram, portanto, mais de cem trabalhos completos, dos quais a metade publicados (em diversos meios, mas nem todos os que foram publicados tinham sido escritos neste ano, como foi o caso de diversos capítulos de livros, alguns redigidos em 2008). Em termos de produtividade média, são cerca de 9 trabalhos por mês, ou dois por semana. Não vou contar agora o número de páginas totais por pura preguiça, mas deve se aproximar de 860 páginas (ou perto de 70 páginas por mês, ou mais de duas páginas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados).
Não deveria ser de todo mau, para um trabalhador compulsivo como eu, mas tenho de confessar uma grande frustração: eu pretendia terminar, neste ano, o segundo volume de uma história da diplomacia econômica no Brasil e não consegui chegar nem perto da metade, talvez menos de um terço do planejado. A razão? Desviei-me, simplesmente, do assunto, para atender outras demandas, responder a pedidos externos, dispersei-me em trabalhos secundários (alguns sem a menor importância), respondi a consultas de alunos, pedidos de ajuda em trabalhos escolares, respondi a questões de jornalistas, perguntas de candidatos à carreira diplomática, de blogueiros, de listeiros, de curiosos, de passantes, enfim, muitos interlocutores agradáveis e até alguns bastante desagradáveis. Basta com dizer que foi distração o bastante para me deixar inclusive com tempo exíguo de leitura, que é o que mais gosto de fazer nas horas vagas (na verdade, em todas as horas, mesmo as não vagas).

Fiz muitas anotações de leitura, dezenas em pequenos cadernos de notas, várias formalizadas como mini-resenhas – 16 no total, talvez um pouco mais – mas poucas grandes resenhas, ao estilo dos review-articles do New York Review of Books, como gosto habitualmente de fazer (uma delas de um livro de depoimentos sobre o Mercosul, um de meus focos permanentes de interesse). Quase não vejo televisão e muito pouco cinema, assim que passo o tempo lendo jornais, revistas e livros, o que também representou um pouco de distração da “grande obra” acadêmica que pretendia realizar. Em vez disso, acabei realizando uma “pequena obra” acadêmica, muitos artigos opinativos (ou dissertativos) e alguns ensaios de pesquisa mais alentada, que é o que eu deveria estar normalmente fazendo, se é que me entendem. Um ponto negativo, portanto, para este balanço da produção em 2009, mas eu pretenderia me corrigir em 2010 (alguém acredita nisso?).

Bem, retirando todos os trabalhos menores, os redundantes, aqueles feitos para atender alguma demanda externa, quais seriam, finalmente, os trabalhos merecedores de serem citados em qualquer lista acadêmica digna desse nome? Começo com a minha compilação de trabalhos sobre a globalização, na verdade uma coleção de réplicas às posições e argumentos canhestros dos antiglobalizadores, pessoas que considero singularmente despreparadas para interpretar o mundo contemporâneo, e menos ainda para propor qualquer coisa de pertinente ou adequado para encaminhar os problemas mais urgentes deste nosso planeta que se recusa a ser o “outro mundo possível” pelo qual eles imploram aborrecidamente a cada reunião internacional. Nunca me eximi de debater propostas concretas, mas jamais consegui ler algo de relevante que alterasse o meu julgamento negativo sobre a inconsistência ‘estrutural’ das posições dos chamados altermundialistas (mas que não conseguem sê-lo); os que desejam conferir o estado da arte nesse debate unilateral, podem consultar alguns dos meus ensaios polêmicos, muitos já publicados, que resumem minha abordagem dos problemas da globalização.
Destaco em segundo lugar a continuidade de meus artigos sobre as “falácias acadêmicas” mais comuns: elas são tantas que eu ainda tenho uma lista enorme aguardando conclusão – e material para pelo menos dois livros – mesmo depois de ter completado, em 2009, nove ensaios da série (e já ter mais dois ou três no pipeline). Ao preparar esses textos, ou seja, ao coletar o material de base para escrever cada um deles, surpreendi-me com o volume de bullshit que é possível recolher a partir de trabalhos publicados por pretensos acadêmicos. Acredito ter desmantelado alguns dos mitos mais renitentes que freqüentam os cenáculos universitários, mas para cada um deles existem três outros à espreita, aguardando alguma pluma desmistificadora.

Escrevi dois trabalhos sobre a mal concebida – desculpem pelo julgamento maldoso – Estratégia Nacional de Defesa, um no começo do ano, outro ao final, e em ambos minha avaliação foi igualmente destrutiva: não se trata de uma estratégia, nem se refere exatamente à defesa do Brasil, ela é apenas prosaicamente nacional (mas seus redatores, e talvez os militares, não me perdoarão por este tipo de argumento). Escrevi vários outros trabalhos sobre a crise financeira, tentando demonstrar – contra gregos e goianos que acreditam realmente que ela foi causada pelas “forças cegas do mercado”, enfim, por aqueles “loiros de olhos azuis” que vivem especulando em Wall Street – que suas causas reais estão na manipulação governamental da taxa de juros e na permissividade fiscal que muitos desses governos praticam. Não creio ter revertido a crença dos já convencidos dos malefícios do capitalismo desenfreado, mas me diverti um bocado no exercício. Vou referenciar os trabalhos mais importantes nessa área para apresentá-los de maneira agrupada no meu blog. Também poderia fazer o mesmo com alguns trabalhos sobre o Mercosul e a integração, mas o panorama nessa área é tão desolador que sinceramente não sei se valeria a pena (embora muitos estudantes me procurem justamente por causa dessa causa outrora promissora).

Meu trabalho mais importante – parte de minha pesquisa para o ensaio sobre diplomacia econômica – foi uma síntese histórica sobre a política comercial brasileira desde o final do século 19 a meados do século 20, no contexto internacional. Deve fazer parte do livro prometido, mas por enquanto permanece solitariamente acabado, esperando a conclusão das demais partes. Outros trabalhos importantes – exigindo certa pesquisa e reflexões mais elaboradas, quero dizer – foram feitos em torno da derrubada (que prefiro à queda) do muro de Berlim e o novo cenário das relações internacionais desde então, bem como um estudo comparativo entre os processos de desenvolvimento do Brasil e dos Estados Unidos com base num ensaio conceitual sobre a ‘civilização americana’ feito por Joaquim Nabuco, elaborado exatamente cem anos atrás (e apresentei-o exatamente na universidade, a de Wisconsin em Madison, na qual Nabuco deveria ter pronunciado sua commencement lecture).

Claro, também fiz alguns trabalhos sobre a diplomacia brasileira, sempre com o pé atrás e a pluma contida, posto que, sendo diplomata da ativa, não posso sair por aí dizendo tudo o que penso de nossa hiperativa política externa, ainda que por vezes eu sinta que ela exibe mais transpiração do que propriamente inspiração. Alguns textos nessa área foram feitos em resposta a consultas de pesquisadores, diplomatas estrangeiros ou jornalistas, e nem tudo foi publicado (eu até diria que quase nada foi publicado, et pour cause). Mas, um artigo bastante crítico sobre a OEA foi, sim, publicado, infelizmente pouco antes de assistirmos à patética e surpreendente comédia de erros cometidos em torno do caso hondurenho, no qual todos os personagens – sem excluir nenhum – se comportaram como naquele horrível filme do início de carreira do Woody Allen (Bananas, para quem ainda não viu) ou como personagens de algum sketch do Casseta e Planeta: foi realmente impagável; aliás, ainda está sendo...
Fui muito solicitado para seminários, palestras, entrevistas, colaborações a livros ou a simpósios, inclusive no exterior, tendo escrito alguns textos em francês e em inglês (vários, entre eles um sobre o Brasil e a não-intervenção, ainda inédito), e creio mesmo que em espanhol (atendendo a jornalistas da região). Alguns serão publicados, outros talvez não, o que depende de minha disponibilidade de adaptá-los às normas sempre diferentes dessas revistas acadêmicas (nunca soube porque elas não adotam um padrão uniforme, o que nos facilitaria muito a vida, nós os colaboradores reincidentes, como eu mesmo). Dialoguei unilateralmente com pessoas das mais variadas orientações políticas, e devo ter criado algumas inimizades, pelo meu jeito acerbo de retrucar argumentos que considero especiosos ou equivocados. Nada me deixa mais indignado do que argumentos de má-fé, ou desonestidade intelectual deliberada, e tenho encontrado muito de ambos, por vezes em instituições das mais respeitáveis (mas os homens são o que são, cegos pela fé verdadeira e convictos de suas causas, sobretudo quando eles aderem a algum partido).
No meio do ano mandei Tocqueville de novo em missão, desta vez para examinar, a pedido do Banco Mundial, o estado da democracia no Brasil; só publiquei o trabalho no final do ano, tendo constatado um cenário deveras lamentável de corrupção política e irracionalidades econômicas de todo gênero, o que também deixou Tocqueville bastante frustrado; na verdade, ele só escreveu, com a minha ajuda, um sumário executivo de um relatório mais amplo, que pretendo terminar um dia, para incluí-lo na série dos “clássicos revisitados”. Sim, devo dizer que, depois do Manifesto Comunista – adaptado aos nossos tempos globalizados e pós-socialistas – perpetrei um Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado), que acaba de ser publicado em formato eletrônico (tenho outros clássicos em preparação, mas não vou dizer quais são). Bem, posso confessar que comecei a escrever, numa dessas noites de insônia, minhas “Memórias Intelectuais”, que pretende ser, não uma história pessoal, mas uma biografia das ideias que permearam a minha vida (elas foram, e são, muitas); não sei quando vou continuar ou sequer terminar, mas as primeiras reflexões já estão feitas (não aguardem nada, porém, antes de o Brasil ganhar mais uma Copa).

Terminei o ano com um balanço da década e uma antevisão de quão ruim pode ser a próxima, se não fizermos nada em termos de luta contra a corrupção, contra o avanço do Estado em nossas vidas (e em nossos salários e rendimentos), para corrigir todas as coisas deficientes que encontramos no Brasil, sobretudo no plano educacional e de políticas públicas mal concebidas (como a tentativa de implantar o Apartheid no país, por meio de medidas de caráter racialista que de fato são racistas). Também completei a minha produção de maior quilate (não sei se o termo se aplica) com uma análise dos Brics em perspectiva histórica e com reflexões e argumentos em torno de suas implicações diplomáticas e de inserção internacional: se não objetarem ao que escrevi, será publicado em 2009 (mas ainda resta conferir, pois desconfio que sofrerá objeções de um guru da área que encomendou).

Enfim, devo dizer – inclusive para satisfazer a curiosidade dos particularmente inquisidores – que todos os meus trabalhos estão perfeitamente relacionados em meu site (ainda que nem todos estejam imediatamente disponíveis), e muitos daqueles que posso considerar secundários são postados diretamente num dos blogs que mantenho.
Voilà, tendo exagerado da paciência dos leitores concluo estas notas muito desordenadas com uma profissão de fé – eu, que sou um completo irreligioso – já que todo mundo tem o seu pequeno conjunto de princípios: acredito no aperfeiçoamento intelectual do ser humano, embora metade da humanidade seja constituída de perfeitos idiotas que passam o seu tempo na frente da televisão assistindo bobagens, em lugar de ler um bom livro (hélas, é o darwinismo ao contrário). Acredito, também, como tenho repetidamente manifestado, na responsabilidade dos acadêmicos e na honestidade intelectual, de quem quer que seja: pessoas que não passam por esses critérios – que considero absolutos – entram numa categoria pela qual tenho pouco respeito, equivalente à dos fraudadores de moedas (não me refiro aos ladrões, e sim aos que arruínam o País com políticas equivocadas) e os ‘corruptos oficiais’. Não vou acusar ninguém agora, pois este não é o instrumento nem a ocasião, mas vou reservar alguns neurônios para esse tipo de combate, em qualquer tempo e lugar.

Concluo agradecendo aos que me ajudaram na consecução de tantas tarefas, meus leitores e revisores, sem esquecer aqueles que, ao me tolherem possibilidades de trabalho em certos meios me deram o lazer e o tempo livre para escrever tantos trabalhos. Seria capaz de mandar um cartão de agradecimento pessoal se certa alergia a determinados espíritos pouco afeitos ao embate de idéias e uma ojeriza recorrente ao que classifico como desonestidade intelectual não me impedissem de fazê-lo. Um dia vou colocar no papel esses episódios pouco gloriosos de nossas instituições públicas.
Por fim, quero desejar a todos, a despeito de tudo o que fiz de errado em 2009 (inclusive chateando muita gente com meus escritos impertinentes), um excelente ano de 2010, com muitas leituras, reflexões bem ordenadas, alguma produção significativa e, o que sempre espero, algum engrandecimento intelectual, pois foi para isso que fomos “feitos”. Pelo menos é o que acredito; pode ser que eu esteja enganado, mas me contento em manter, ao menos, esse tipo de credulidade. Bom ano a todos...

Brasília, 22-31 de dezembro de 2009.

sábado, dezembro 26, 2009

27) O Yin e o Yang dos sentimentos

O Yin e o Yang dos sentimentos
Paulo Roberto de Almeida
(Em vôo: Miami-Manaus-Brasília, 2 de maio de 2009)

De volta de meu programa de Visiting Scholar na Universidade do Illinois, vim lendo, no avião, um livro que tinha comprado no Rubin Museum of Art, de New York: The Geography of Thought, do psicólogo Richard Nisbett. Ele trata das diferenças de estilos, ou formas, de pensamento entre o Ocidente e o Oriente, com maior ênfase, de um lado, no raciocínio abstrato de origem grega e, de outro, na maneira de pensar dos asiáticos, mais especificamente os chineses.
Sem que eu queira resumir agora o livro – tanto porque ainda não o terminei – ou dele retirar qualquer ensinamento precipitado, atraíram-me os conceitos de yin e yang, vindo daí a idéia de pensar as duas forças fundamentais que considero mover os seres humanos, o amor e a amizade, em termos da oposição e complementaridade entre esses dois elementos da forma chinesa de pensar o mundo, tanto a natureza como as relações entre as pessoas.
O amor e a amizade são dois sentimentos permanentes e poderosos, que permeiam toda a nossa existência. Eles não são exatamente racionais, sequer racionalizáveis, mas constituem uma química imprecisa, por vezes traiçoeira. Em suas dimensões próprias, eles não se opõem, necessariamente, mas mantêm uma relação de dependência e de exclusão que explica muitas das nossas atitudes, decisões, escolhas e aspirações ao longo de toda uma vida. Impossível viver sem amizades, difícil viver sem um amor. Ambos sentimentos existem nos círculos familiares, mas eles são de certa forma abafados pelos vínculos contraditórios da afetividade e da autoridade que permeiam naturalmente toda interação familiar.
Esses dois sentimentos se encontram, em sua mais pura expressão, nas relações livremente consentidas, voluntariamente formadas, conscientemente buscadas, deliberadamente desenvolvidas e entretidas. A amizade é, quiçá, o primeiro sentimento a aflorar, quando encontramos alguém que parece nos complementar; ela se mantém, se for verdadeira, nas alegrias e decepções, nas conquistas e frustrações, pois que solidificada na busca de objetivos comuns, sustentada por ideais mutuamente compartilhados.
O amor é algo mais raro, talvez extremamente raro, só existindo quando o sentimento de amizade atinge sua forma mais refinada, mais profunda, intensamente dirigido para ‘produzir’ o bem e a felicidade da pessoa amada. Ele incorpora, perpassa e reforça a amizade, mas também contém outras forças que se opõem, pelo menos em parte, à amizade e tornam esta difícil: o sentimento de exclusividade, o desejo compreensível de posse, a satisfação diretamente relacional, sem a abertura que a verdadeira amizade promove nas esferas circulares das muitas relações humanas e sociais.
Acredito, em todo caso, que um sentimento não deveria existir sem o outro. Aliás, sempre me perguntei se um e outro eram possíveis simultaneamente, em direção ao mesmo ‘objeto’, ou seja, totalmente compatíveis entre si. Confesso que não sei: não tenho, ainda, uma resposta precisa a esta questão, e talvez ela nunca chegue. Meu desejo sincero é que ambos sejam preservados e promovidos para que possamos ser verdadeiramente felizes e façamos alguém muito feliz.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

26) Uma lista de possiveis trabalhos em 2010

Volta ao mundo em 25 ensaios:
Um convite e minha decisão de colaborar com o Ordem Livre

Paulo Roberto de Almeida
Ensaios programados para o site OrdemLivre.org

Meu amigo e colega “filosófico” Diogo Costa () formulou-me um convite, aparentemente irrecusável, para que eu mantenha um espaço quinzenal de 600 a 800 palavras no site Ordem Livre (OrdemLivre.org) durante o ano de 2010, onde eu passaria a ter a oportunidade de compartilhar com um público mais vasto idéias sobre a política internacional e a brasileira.
Suas diretrizes, formuladas em 7 de dezembro de 2009, foram: “1) O texto deve promover pelo menos um desses princípios: A) Liberdade individual, B) Livre mercado, C) Governo limitado, D) Paz; 2) Deve-se contestar argumentos, não intenções; atacar e defender idéias, não pessoas ou grupos”. Estas foram as condições e recomendações formuladas, o que achei absolutamente pertinente e cabível para um espaço público liberal e democrático como o site Ordem Livre.
Com base nessas explicações claras, decidi aceitar o convite, tendo plena consciência (o que representa um esforço extraordinário de síntese e concisão) de que os meus textos não podem ultrapassar o tamanho ideal de duas páginas, no máximo pouco mais de duas páginas, o que é um desafio enorme para mim. Em todo caso, trata-se de um exercício de redução de meus textos ao que deveria ser o tamanho ideal: escapar da verborragia grandiloqüente (muitas vezes inútil) dos ensaios acadêmicos “normais” para tentar encontrar um público mais vasto, que a rigor não tem tempo, nem disposição, para enfrentar longas digressões “intelectualóides”. Decidido, portanto, convite aceito, partida acionada.
Os temas focados seriam os de economia mundial e brasileira, a política internacional e a brasileira, com um formato ideal consistindo de: (a) exposição inicial de uma questão determinada; (b) situação atual ou tratamento dado ao problema no Brasil ou no mundo; (c) como melhor resolver essa questão ou problema pela aplicação dos princípios liberais e de livre mercado. Ou seja, o ideal seria definir um formato consistindo de: 1. exposição inicial ; 2. debate ou discussão das opções em jogo; 3. conclusões “lógicas”, permitindo, idealmente, “esgotar” um determinado assunto em pouco mais de duas páginas, no máximo.
Com base no que precede, decidi estabelecer um planejamento editorial tentativo que contemplaria (de modo não limitativo) os 25 ensaios seguintes:
1. Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...)
2. Economia mundial: de onde viemos, para onde vamos?
3. Política internacional: por que não temos paz e segurança?
4. Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer
5. Políticas econômicas nacionais: divergências e convergências
6. Cooperação internacional e desenvolvimento: isso muda o mundo?
7. Guerra e paz no contexto internacional: progressos em vista?
8. Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata?
9. Duas tradições no campo da filosofia social: liberalismo e marxismo
10. Como organizar a economia para o maior (e melhor) bem-estar possível
11. Livre comércio: uma idéia difícil de ser aceita (e, no entanto, tão simples)
12. Políticas ativas pelos Estados funcionam?; se sim, sob quais condições?
13. Competição e monopólios (naturais ou não): como definir e decidir?
14. Orçamentos públicos devem ser sempre equilibrados?
15. Países ou pessoas ricas o são devido a que os pobres são pobres?
16. Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos?
17. Por que a América Latina não decola: alguma explicação plausível?
18. Por que o Brasil avança tão pouco: sumário das explicações possíveis
19. Distribuição de renda: melhor fazer pelo mercado ou pela ação do Estado?
20. Brasil: o que poderíamos ter feito melhor, como sociedade, e não fizemos?
21. Qual a melhor política econômica para o Brasil?: algumas opções pessoais
22. Qual a melhor política externa para o Brasil?: algumas preferências pessoais
23. O que podemos aprender com a experiência dos demais países?
24. Nossa contribuição para o mundo: onde o Brasil pode ser melhor
25. Uma volta ao mundo em 25 ensaios: itinerário percorrido e o que resta fazer
Decisão tomada, planejamento feito, só me cabe dar a partida ao processo. Prazo: um ano; depois fechamento do projeto e um balanço pessoal do percurso.

Paris, 9 de dezembro de 2009.

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Addendum em Abril de 2010:
Apenas como informação, terminei todos os trabalhos, menos o último, que pretendo fazer mais adiante, entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010. Eles serão publicados progressivamente ao longo de 2010, sendo que eu terei oportunidade de revisar e corrigir alguma coisa no meio do caminho...
Paulo Roberto de Almeida
Shanghai China

segunda-feira, novembro 23, 2009

25) E ja que falamos de Itaca, vale lembrar a lenda de Icaro...

Um texto, também, de 2004, pouco divulgado, mas que merece, provavelmente, encontrar nova reflexão, novas lições, novos ensinamentos...

A parabola de Ícaro
Paulo Roberto de Almeida

A lenda de Ícaro se refere, obviamente, ao filho de Dédalo, o construtor do labirinto do rei Minos, de Creta, que, ao revelar o segredo do palácio-prisão a Teseu, permitiu que o terrível Minotauro fosse morto. Condenado ao labirinto com seu filho, Dédalo trama a fuga por via aérea, fabricando asas a partir de plumas de pássaros, untadas com cera. O vôo de Ícaro pode ser descrito como uma parabola: atraído pelo esplendor do sol, ele se eleva em demasia no céu, para cair logo em seguida, devido ao derretimento da cera que prendia as plumas de suas asas.
Há muitas maneiras de interpretar o mito de Ícaro e seu vôo para a queda, mas eu prefiro me ater aos perigos do excesso de exposição, que pode colocar em risco qualquer situação aparentemente bem estabelecida. De fato, em várias circunstâncias da vida, encontramos casos de ascensão fulgurante, seguida de uma rápida queda, o que, aliás, corresponde ao movimento da parábola. Mas, ademais dessa acepção matemática, o termo parábola também pode se referir a uma narrativa de fundo moral, geralmente de origem bíblica, denotando um possível ensinamento virtuoso que devemos retirar de alguma adversidade sofrida. Em suma: uma alegoria de valor espiritual e forma racional.
A despeito da tristeza imediata, e dos dissabores ligados a algum desastre não definitivo – o de Ícaro, obviamente, foi irremediável –, devemos sempre retirar lições morais das frustrações que enfrentamos na vida. Com exceção da punição extrema, da qual não há retorno possível, todas as demais situações de “queda” são suscetíveis de nos trazer algum elemento útil na determinação de nossa própria responsabilidade sobre eventuais desastres incorridos. De certa forma, os desastres são ainda mais “úteis” do que os sucessos, uma vez que estes podem ser devidos à obra do acaso, ao passo que aqueles sempre derivam de erros que cometemos em situações de escolhas alternativas. A despeito da literatura de negócios enfatizar, por exemplo, os grandes casos de sucesso empresarial, com lucros extraordinários e desempenho excepcional de mercado, os casos de fracasso são igualmente significativos, se não mais, no exame ponderado de nossas próprias fraquezas estruturais e debilidades circunstanciais. O sucesso pode ser motivo de embriaguez; o fracasso desperta e estimula.
Gostaria de ver na parábola de Ícaro uma lição moral para um exame honesto e sincero de algum comportamento afoito, eventualmente determinado pela presença de um sol momentâneo que brilha à nossa frente, atraindo-nos pelo calor e pela luz, mas que pode se revelar perigoso para nossa própria sobrevivência (não necessariamente física, mas “espiritual”). Ao fim e ao cabo, Ícaro é o exemplo que queremos evitar, mas só nos lembramos de revisar nossos atos e palavras quando somos confrontados à ameaça de algum desastre iminente, ou, o que é pior, no seu imediato seguimento.
Qual foi a ação que determinou nossa queda, qual foi a palavra impensada que nos levou ao desastre, que seqüência de iniciativas ou gestos desastrados nos levaram à derrota ou à simples frustração, que ensinamento retirar da adversidade (que se espera) momentânea? E sempre nos perguntamos: como pudemos ser tão estúpidos? Salvo os espíritos fracos, em geral saimos mais fortalecidos desse tipo de situação, em todo caso mais modestos e humildes do que no começo, dispostos a reiniciar nossa aventura, desta vez desprovidos de excesso de otimismo e armados de algo mais do que plumas e cera. O distanciamento crítico em relação aos fatores de atração e de queda se torna não apenas recomendável como provavelmente necessário, se quisermos retomar nossa liberdade de iniciativa e de ação.
Em definitivo, o impetuoso Ícaro foi vítima de sua própria afoitez e precipitação. Melhor, talvez, ficar com o exemplo de Ulisses, famoso não apenas por sua força, destreza e bravura, amplamente demonstradas na conquista de Tróia, mas sobretudo por sua tenacidade em face dos mais diversos perigos e trapaças da sorte. Com paciência e cálculo inteligente, ele soube arrostar todas as dificuldades e adversidades que lhe foram apresentadas por monstros e sereias, navegando de forma persistente em direção da ilha de Ítaca. Ao chegar, ele ainda teve de enfrentar os vários pretendentes que disputavam sua Penélope. Mas, isso já é motivo para uma outra estória…

Brasília, 26 de outubro de 2004.

24) Por que sou professor: uma reflexao idealista...

Este longo texto, que vai transcrito abaixo, foi escrito no final de 2004, em circunstâncias que não sei precisar neste momento, provavelmente num momento de reflexão profunda sobre o que eu sou, o que pretendo ser, o que gosto de ser, e o que me motiva a fazer o que faço.
Não creio que ele tenha merecido divulgação mais ampla desde que foi escrito, motivo pelo qual me permito reproduzi-lo aqui, prometendo voltar ao assunto (de forma menos prolixa) numa próxima oportunidade...

A caminho de Ítaca...
Paulo Roberto de Almeida

De todas as ocupações que fui dado até agora exercer, numa vida nômade e aventurosa da qual guardo não poucos momentos de orgulho, a que mais prezo e valorizo, obviamente, é a de professor, ou melhor de orientador de ensino, uma vez que não sou professor em tempo integral, nem retiro meu principal ganha-pão dessa nobre função de "mestre de artes e letras". Não sei, aliás, se tenho o direito de me considerar professor, no sentido estrito do termo, já que nunca fui treinado para tanto, desconheço as mais elementares noções de pedagogia e não tenho certeza, de fato, se ao exercer esse nobre ofício minha real intenção é a de tentar ensinar algo a outras pessoas ou, como parece mais provável, faço de tudo isso uma grande "figuração" e estou, de verdade, aprendendo algo novo cada vez que me ocupo dessa absorvente atividade.

Antes que alguém pense que sou, apenas e tão somente, um grande "embromador", utilizando-me de inocentes alunos para, constantemente, ensinar "algo" a mim mesmo, desejo retificar minhas palavras, e corrigir essa sensação de improvisação no trato com o corpo discente. Acredito ter realmente algumas coisas úteis a ensinar a outras pessoas, mais por desejo de transmitir "coisas novas", que venho aprendendo desde muitos anos, ao longo de constantes e intensas leituras, do que propriamente por "necessidade" de ter uma segunda profissão (ainda que, de fato, eu a considere a minha "primeira" e "eterna" ocupação, ao lado desta mais formal que exerço temporariamente de "diplomata"). Com efeito, não retiro, como disse, meu sustento dessa atividade que muitos julgam paralela e exercida como uma espécie de "hobby" ou para "complemento de salário". Longe disso, pois que nunca o fiz, pelo menos desde que ingressei no serviço exterior brasileiro, pensando nos retornos pecuniários que retiraria dessa dupla jornada de trabalho, muitas vezes estafante e exercida contra meu lazer pessoal ou dedicação à família, ou em detrimento da ainda mais prazeirosa ocupação de simples leitor e escrevinhador de coisas várias.

Nunca pensei em ser professor, achando que eu tinha, de fato, qualquer coisa de "extraordinário" para ensinar a "mentes inocentes", ou que essa minha atividade temporária e fortuita iria fazer alguma diferença na futura capacitação profissional daqueles temporariamente colocados sob minha responsabilidade docente. O que de fato sempre me motivou a ensinar, ou pelo menos a "transmitir conhecimentos", foi uma espécie de motivação interior, algo como uma compulsão inata que me impele a sistematizar o meu próprio "conhecimento" e tentar repassar aquela maçaroca de idéias e conceitos sob uma forma minimamente organizada, de forma a satisfazer minhas próprias necessidades em termos de racionalização do saber adqurido nos livros (e também na observação homesta da realidade) e de "atingimento" de uma nova "síntese" a partir desses conhecimentos dispersos na "natureza". Estou parecendo muito "dialético"?

Não importa, desejo confirmar e reafirmar que o que me impele a ser "professor" é mais uma força interna do que uma necessidade externa, quaisquer que sejam as outras motivações aparentemente altruísticas geralmente invocadas nessas circunstâncias (compromisso com o "saber", transmissão de "conhecimento", desejo de "formar os mais jovens", atendimento de uma "vocação" e outras escusas do gênero). Sou professor porque eu mesmo "preciso" disso, não porque outros possam eventualmente "precisar" de minhas competências gerais ou habilidades específicas. Se desejar, você pode considerar isso altamente "egoísta" ou profundamente "narcissístico": não me importo com as classificações externas, pois minha motivação interior não vai mudar porque se descobriu, aparentemente, algum motivo menos "nobre", ou passavelmente "auto-centrado" nesta principal "ocupação secundária".

É esta motivação interna, não necessariamente "espiritual", que me leva a desviar-me de outras atividades, talvez mais prazeirosas -- como o próprio lazer pessoal, a convivência familiar ou o simples tempo alocado à minha outra compulsão não tão secreta que é o hábito da leitura --, para dedicar-me a essas práticas docentes com uma certa regularidade e constância. Nem por isso desprovidas de algum retorno pecuniário: a despeito de já ter aceito dar aulas de mestrado gratuitas em universidade pública -- e de dar incontáveis palestras sem nunca ter sequer invocado alguma remuneração em contrapartida, por vezes mesmo tendo incorrido em despesas pessoais de deslocamentos a outras cidades --, o essencial das minhas atividades docentes se faz segundo tradicionais práticas contratuais. Nem poderia ser de outro modo: se eu deixo de ler ou de escrever para dar aulas, que o "desvio" de ocupação me permita ao menos alimentar esse terrível vício da compra de novos livros e periódicos.

Tampouco eu poderia invocar como motivação "nobre" a própria arte do ensino. Sendo eu mesmo um autodidata radical, não me preocupa tanto o que os alunos possam estar aprendendo, como o próprio conteúdo do que estou ensinando, que pretendo seja o mais claro possível, o mais didático e o mais completo dentro daquele campo de conhecimento. Transmito aquilo que sei, aos alunos, depois, o encargo de reter o novo saber, de complementá-lo com as muitas indicações de leitura que não me canso de fazer ou de interrogar-me sobre algum aspecto pouco claro ou solicitar esclarecimentos adicionais sobre "coisas" passavelmente complexas, quando não prolixas (sim: tenho esse péssimo hábito, talvez pelo excesso de leituras, de "complicar inutilmente" a vida de meus alunos, estendendo-me sobre longos períodos históricos, voltando a um passado remoto para encontrar as "causas" de algum processo atual ou supondo um conhecimento geral, sobre o Brasil ou o mundo, que simplesmente não existe mais para a maior parte das gerações mais jovens). Nesse sentido, sou mais "substância" do que "forma", ao dar uma densidade no mais das vezes dispensável a um conteúdo de aula que a maior parte dos alunos provavelmente preferiria superficial ou no estrito limite do "necessário para fazer a prova". Mas, como disse, não estou principalmente preocupado com o que os alunos possam "aprender" e sim com o que eu mesmo possa "ensinar".

Trata-se, portanto, de uma "má técnica docente"? Talvez, ou quem sabe até, por certo... Minha didática está em "ensinar", ou transmitir conhecimentos, julgando que os alunos, ou ouvintes de alguma palestra, serão suficiente maduros ou responsáveis para procurar, depois, seu próprio aperfeiçoamento cultural ou intelectual, cultivando as boas práticas do auto-didatismo que eu mesmo reputo valiosas para mim mesmo (e assim tem sido desde os tempos remotos em que aprendi a ler, na "tardia" idade de sete anos). Tanto sou motivado pela necessidade interior de ensinar, que procuro estender a tarefa além das quatro paredes da sala de aulas ou de um auditório ou seminário acadêmico. Pela necessidade de "complementar" esse ensino fora do período "normal" de atividade docente, criei e mantenho, praticamente sozinho (sem possuir as técnicas para tanto) um site de informação com motivações essencialmente didáticas. Também tenho produzido material impresso como derivação ou complementação das atividades didáticas: praticamente todos os meus livros -- com exceção de um grosso "tijolo" de pesquisa histórica -- resultaram de aulas dadas, conferências pronunciadas, palestras proferidas, seminários a convite (sim, nunca me "convidei" para qualquer tipo de atividade externa, tanto porque não conseguiria atender a todas essas oportunidades).

Tanto o site como os livros e trabalhos publicados, bem mais até do que as aulas dadas em caráter necessariamente restrito, constituem, obviamente, oportunidades para aparecer em público, me tornar "conhecido", quem sabe até "famoso" em certos meios. Seria então por um secreto desejo de prestígio pessoal, de reconhecimento público, de notoriedade acadêmica, que me obrigo a todas essas atividades cansativas, que não raro penetram fundo na madrugada e ocupam quase todos os fins de semana, para maior angústia familiar e evidente cansaço cotidiano? Não posso, honestamente, recusar esse aspecto da "necessidade de reconhecimento", talvez uma demonstração de "desvio de personalidade", buscando na exposição pública e no aplauso dos demais uma satisfação de alguma necessidade "secreta" que o excesso de timidez me impediria de realizar de outro modo. Não creio, todavia, que esse aspecto seja determinante, tanto porque tenho inúmeros outros trabalhos que permanecem rigorosamente inéditos ou porque mantenho, em paralelo, alguma atividade de correspondente dedicado -- e não apenas em direção dos muitos alunos que me procuram pedindo ajuda em trabalhos ou projetos de estudos -- e algumas colaborações regulares com determinados serviços de informação que não levam necessariamente minha assinatura.

A principal motivação, volto a reafirmar, é interna, e deriva dessa minha inclinação pelo estudo, pela sistematização do conhecimento, pela necessidade de eu mesmo "ver claro" no emaranhado de informações que recolho diariamente de livros, jornais e revistas, pelo desejo subseqüente de organizar o conhecimento adquirido em uma nova "síntese combinatória" e pela motivação ulterior de tentar alcançar um público mais amplo ao colocar no papel, se possível impresso e publicado, essa massa de conhecimentos que adquiro de forma contínua e de modo interminável. Tanto é assim que acabo aceitando, contra a opinião familiar e contra o que seria sensato do ponto de vista profissional, dar palestras em alguns cantos recuados deste país continente, sem outra motivação aparente (e real) do que a de atender à solicitação de algum grupo de estudantes que acabaram descobrindo, na Internet ou nas bibliografias, algum livro ou trabalho meu que estiveram na origem dos convites.

Sem pretender dar qualquer conotação de "épico literário" a esse meu ativismo docente, algo de "jornada de Ulisses" pode estar escondida nas minhas aventuras didáticas, no mar revolto das instituições de ensino superior e nas enseadas mais movimentadas dos seminários acadêmicos. Com efeito, minha busca incessante de "complemento professoral" às atividades profissionais normalmente desempenhadas no âmbito da carreira diplomática -- já por si suficientemente absorvente -- pode ter esse sentido de "unending quest", de busca incessante de algo mais, ou de itinerário contínuo em direção de algo valorizado, que eu não bem precisar o que seja, exatamente. Na verdade, a comparação pode ser "misleading", pois mesmo Ulisses sabia para onde queria ir, e a esse objetivo dedicou todo o tempo da volta de Tróia, ainda que tivesse constantemente desviado de alcançar seu destino final pelas trapaças da sorte e pelos acasos da vida. De minha parte, eu não sei exatamente o que persigo ao me "obrigar", literalmente, a exercer uma "segunda" -- ou primeira? -- profissão, ao lado daquela que me distingue socialmente, que me define institucionalmente e que me remunera essencialmente.

Independentemente do destino final, o caminho de Ítaca é ele mesmo toda uma aventura de vida, uma experiência gratificante (por vezes "mortificante") e, de certa forma, um reconhecimento implícito de uma certa "dívida social" que eu desejaria amortizar da forma mais inconsciente possível. Como seria isso? Sendo eu originário de família modesta, "habitante", até a adolescência tardia, de uma casa onde eram poucos os materiais de leitura e relativamente raros os "livros sérios", tendo feito toda a minha educação formal em instituições públicas e tendo tido a chance de poder freqüentar, desde muito jovem, uma biblioteca infantil, aprendi a valorizar tremendamente o hábito da leitura e o auto-aprendizado. Sou, essencialmente e verdadeiramente, um autodidata, no sentido mais completo e profundo da palavra, algo não necessariamente extraordinário ou excepcional, mas que no meu caso corresponde inteiramente a toda uma realização de vida que devo reconhecer e valorizar honestamente.

Mas, onde entra "Ítaca" nessa história de "self-made intellectual", de sucesso profissional pelo esforço próprio, de mérito social pelo empenho no estudo e no trabalho? Creio que "Ítaca" é uma espécie de "Santo Graal" intelectual que persigo por simples desencargo de consciência. Como aprendi por mim mesmo, mas também aprendi porque freqüentei escolas públicas que num determinado momento eram "boas" -- mas que hoje são passavelmente sofríveis, quando não insuficientes para formar qualquer estudante para o ingresso no terceiro ciclo -- e sobretudo aprendi porque tive à minha disposição uma biblioteca repleta de livros interessantes, acredito que ao me obrigar a dar aulas eu esteja, talvez inconscientemente, procurando dar aos outros aquilo que eu mesmo tive como "oferta da sociedade", basicamente uma boa escola pública e uma "grande" biblioteca infantil. São essas instituições que fizeram de mim o que sou hoje -- ademais do esforço próprio no estudo e na leitura, por certo -- e aparentemente eu tenho um certo "calling", um certo dever de consciência de contribuir em retorno ao que obtive em priscas eras (com perdão pela horrível expressão "pasteurizada"). Obviamente não estou retribuindo na justa medida, pois que dou aulas e orientação a "marmanjos" do terceiro ciclo, não a "pequenos inocentes" dos dois ciclos anteriores, mas é o que eu posso fazer, com meu singular despreparo para aulas de ensino fundamental, e meu (reconheçamos) excepcional preparo para o ensino especializado, fortemente intelectualizado.

Voilà, minha ilha de Ítaca é uma espécie de miragem, um ponto não alcançável no horizonte, jamais realizado ou realizável, mas que conforma um objetivo material (e "espiritual") que me traz imensa satisfação pessoal: a necessidade de ensinar, um desejo (agora não tão secreto) de contribuir para o engrandecimento alheio tomando como ponto de partida os conhecimentos que fui adquirindo ao longo de uma vida razoavelmente feliz, ainda que materialmente difícil, feita de muito estudo, de leituras intensas, de escrituras compulsivas, de perorações infinitas, de um constante navegar em busca de mais conhecimento, de mais informação, de um pouco mais de compreensão (no sentido weberiano da Verstehen).

Não sei, aliás, se chegarei a alguma Ítaca algum dia: a sensação que mais tenho é a de que sempre há uma nova porção de mar para além do horizonte, de que a busca do conhecimento é infindável e propriamente inesgotável. Mas, pelo menos, não busco o conhecimento pelo conhecimento, não me retiro nos prazeres secretos da leitura pela leitura, como esses leitores de Proust que fazem da busca do tempo perdido um exercício de indeclináveis características de "eterno retorno". Eu acredito na "flecha retilínea do tempo" (com os habituais "acidentes de percurso"), acredito que o saber tem um caráter instrumental, de liberação, de capacitação humana, de engrandecimento social, de aperfeiçoamento da humanidade, de busca de valorização do que é belo, do que é útil e, sobretudo, do que é bom. Nesse sentido, não sou relativista, nem agnóstico: acredito que o exercício das paixões humanas -- e, no caso, minhas atividades didáticas ou professorais constituem uma "paixão" -- podem e devem servir a algo de valorizado socialmente, não para uma mera satisfação pessoal de fundo egoísta.

Repito: dou aulas ou orientação com um certo sacrifício pessoal e familiar, e de forma nenhuma motivado pela remuneração ou pelo prestígio vinculado a essas atividades. Eu o faço por necessidade interior e motivado por um sentimento que poderia, honestamente, classificar como "nobre". Retiro satisfação social dos encargos docentes auto-assumidos, mas sobretudo retiro satisfação pessoal pelo fato de estar ensinando "algo" a mim mesmo: esse algo é a consciência de que pertencemos a uma entidade que nos transcende – sem qualquer espiritualismo aqui -- e que precisa melhorar constantemente para que nós mesmos possamos ter motivos contínuos de satisfação social ou pessoal. Sou perfeitamente "materialista", mesmo incorrendo no risco de ser incompreendido por esse conceito tão carregado de significados obscuros e supostamente "vulgares": acredito que a elevação da humanidade se dará por força e empenho pessoal de seus componentes irredutíveis, que são os seres humanos como eu e você, que me está lendo neste momento. Eu procuro, modestamente, contribuir com o meu pequeno esforço para a elevação dos padrões materiais e morais da humanidade. Por isso tenho orgulho em ser professor ou orientador, mesmo não necessitando fazê-lo por razões objetivas ou externas.

Se não me falharem as forças, continuarei a caminho de Ítaca pelo resto de meus dias...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de outubro de 2004

domingo, novembro 22, 2009

23) Une saison dans les plaines

Une saison dans les plaines: dez anos fora do Itamaraty
Paulo Roberto de Almeida
Ensaio para a seção “Além do Itamaraty” do Boletim ADB
(ano 16, n. 67, outubro-novembro-dezembro 2009, p. 20-21).

No último mês de Setembro de 2009 completei exatos dez anos fora da Secretaria de Estado. Well, sort of: contando-se os quatro anos como ministro-conselheiro na Embaixada em Washington – de setembro de 1999 a outubro de 2003 – foram, mais precisamente, seis anos “líquidos” fora do Itamaraty, o que, se não me coloca num Guiness dos diplomatas da ativa alijados do corpo do Estado para o qual fizeram concurso de entrada, certamente me permite uma visão diferente de como é a vida “além do Itamaraty”. A bem da verdade, talvez os dez anos não se tenham esgotado de vez, posto que acabo de ser reintegrado à Secretaria de Estado apenas para ser removido a um posto no exterior dentro de mais alguns meses...
Não que eu tenha escolhido voluntariamente tal “estada na planície”, mas são as “trapaças da sorte” que nos levam a situações por vezes inesperadas. A bem da verdade, quando da decisão de deixar a capital do Império para voltar ao cerrado central, eu dispunha de um convite para trabalhar numa área não executiva da Secretaria de Estado, não a que eu teria voluntariamente escolhido mas, digamos, aquela que de certa forma mais combinava com o meu caráter exageradamente estudioso. Não sei bem como, ou por que, essa possibilidade não se confirmou, por razões ainda obscuras, assim como foram obscuros dois outros bloqueios quando novas oportunidades apareceram, já no meio da estada em Brasília. Não creio que as explicações estejam nos “impulsos cegos do mercado” – ou seja, apenas a competição entre os mais capazes, ou os mais bem dotados pelas forças da natureza. Elas talvez se situem bem mais nos “espaços de política”, mas isso caberia esclarecer um dia.
O fato é que, em meados de 2003, aceitei um convite do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e de Assuntos Estratégicos para assessorá-lo no recém criado Núcleo de Assuntos Estratégicos, uma espécie de mini policy-planning staff, vinculado diretamente à Presidência da República. Meu primeiro trabalho foi colaborar num projeto para trazer de volta ao Estado o sentido do planejamento estratégico, de cuja condição ele se tinha aparentemente afastado por força de décadas de inflação galopante, de uma longa crise crônica, entremeada por planos mal concebidos e mal aplicados, e de várias tentativas de estabilização macroeconômica finalmente consolidadas no Plano Real. Comecei justamente por fazer um balanço da experiência brasileira de planejamento desde o pós-guerra, um ensaio publicado no primeiro número dos Cadernos do NAE, dedicado à apresentação do então nascente projeto “Brasil Três Tempos: 2007, 2015, 2002”.
Permito-me um parênteses para explicar a origem desse projeto tri-anualizado, algo que já me foi perguntado por diversos interlocutores aos quais fiquei devendo uma explicação formal. Quando cheguei ao NAE, este ainda indefinido quanto à sua composição e funcionamento, se discutia um projeto de longo prazo para o Brasil, algo como 2020, talvez nos moldes dos cenários alternativos que tinham sido elaborados na encarnação anterior da Secretaria de Assuntos Estratégicos, sob o ministro Ronaldo Sardenberg. Pessoalmente, considerei essa perspectiva temporal “keynesianamente” muito longínqua, e propus, em seu lugar, um “Brasil 2008”, para marcar duzentos anos de administração e de empreendimentos do Estado a partir do próprio Brasil. Como estávamos ainda em 2003, e o governo deveria, teoricamente, encerrar-se em 2006, não haveria, a rigor, um planejamento para a administração em curso, mas sim uma série de propostas – que eu concebia ao estilo das metas do milênio da ONU, mas reduzidas à metade do prazo, e mais exigentes em seu conteúdo – que permitiriam ao Brasil retomar o sentido estratégico da construção nacional (não necessariamente do próprio Estado) com objetivos estritamente delimitados e focados no seu cumprimento. Foi dessa discussão entre o curto, o médio e o longo prazo que nasceu a idéia de se empreender um projeto em “três tempos”, sendo 2007 a primeira etapa, 2015 a superação das metas do milênio, e 2022 a comemoração dos duzentos anos de independência com uma nação presumivelmente desenvolvida.
Minha concepção, porém, era a de um conjunto limitado de objetivos socioeconômicos – talvez não mais do que cinco grandes objetivos estratégicos – de maneira a realmente concentrar os esforços naquilo que eu considerava crucial para o desenvolvimento brasileiro: a educação, não necessariamente a universitária, e menos ainda aquela concentrada nas instituições federais de ensino superior. O projeto – não por minha escolha – acabou contemplando um número exageradamente elevado de “objetivos estratégicos”, o que obviamente não ajudou na focalização das ações. Seja como for, ao lado desses trabalhos dotados de sofisticada metodologia, levados a cabo, em sua maior parte, no excelente ambiente de trabalho intelectual que é o CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, onde fiz bons amigos – também escrevi e encaminhei ao chefe do NAE várias dezenas de mini-memos de trabalho, sobre diversos assuntos, enfocando em geral temas de políticas públicas em discussão no governo. Quando o responsável máximo se afastou do NAE, por razões que não cabe discutir, coloquei imediatamente meu cargo à disposição e fiquei aguardando que a Secretaria de Estado me designasse para novas responsabilidades.
Foram praticamente dois anos e meio de espera, numa situação que eu mesmo classificaria de administrativamente irregular, não por minha escolha, obviamente. Esse tempo de afastamento da Secretaria de Estado, trabalhando em outro órgão, e de “travessia do deserto”, me permitiu, em todo caso, conhecer melhor o funcionamento (ou não?) da máquina do Estado – posto que interagi bastante, enquanto no NAE, com outras esferas da administração federal – e também a opinião de outros servidores do Estado sobre os diplomatas (nem sempre a mais elogiosa ou esperada). Devo dizer, aliás, que cansavam-me aquelas intermináveis reuniões no Palácio do Planalto, com alguns supostos decisores da cúpula, tecnocratas gramscianos (mas sem cultura renascentista) e que concluíam, depois de três horas de discussões atabalhoadas, por não concluir nada; ou melhor: se decidia fazer uma consulta entre os “movimentos sociais”, como se estes detivessem a “luz divina” do planejamento estatal.
Desfrutei, durante esse tempo, de uma liberdade que provavelmente não teria conhecido no Itamaraty: para escrever, para viajar, para aceitar alguns convites acadêmicos que teriam passado ao largo de ocupações burocráticas na Secretaria de Estado. Certamente que esse afastamento – involuntário permito-me sublinhar mais uma vez – prejudicou minha carreira, talvez de uma maneira irremediável, mas cada um deve assumir plena responsabilidade por suas escolhas, atitudes e iniciativas. Sou e continuo responsável por tudo aquilo que digo, que escrevo, que publico, o que por vezes não é bem visto em certos meios, mas isso não me angustia demasiado: tenho por norma dizer exatamente o que penso – como resultado de pesquisas, leituras e reflexões – e não costumo depositar o cérebro na portaria quando vou trabalhar. Meu critério exclusivo, seja na vida acadêmica, seja na profissional, é o da honestidade intelectual, o que por vezes não se coaduna bem com certos meios politizados...
Minha travessia pela planície das idéias – em contraposição aos commanding heights da ação executiva em negociações diplomáticas – tem sido gratificante no plano pessoal e creio ter servido ao País tão bem quanto qualquer outro funcionário de Estado, posto que nunca abandonei a perspectiva do serviço ativo. A nação comporta e abriga diferentes tipos de colaboração: continuo fazendo a minha parte...

PS.: Em todo caso, agradeço a todos aqueles que me permitiram tanta liberdade produtiva: nesse período, escrevi quatro livros e incontáveis ensaios acadêmicos e textos menores. Meu Lattes engordou, mas ninguém mete a mão nele por mim...

Brasília, 4 novembro 2009.

quinta-feira, novembro 19, 2009

22) Mais um aniversario...

Etapas cronológicas (mais uma) e sentido da vida (se é que existe)
Paulo Roberto de Almeida

Cada nova etapa da vida, ou melhor, cada marca do avanço anual em nosso itinerário pessoal (sempre irreversível, como a flecha do tempo), convida, ao que parece: (a) à elaboração de um balanço recapitulativo; (b) a se fazer uma reconsideração do que já foi cumprido, até o momento do balanço, ou seja, proceder a uma avaliação do que poderia ter sido feito, e todavia não foi; e (c) eventualmente, a uma reconfiguração (novas promessas?) do que se pretende fazer, desse momento para a frente.
Nem todos cumprem essa tripla tarefa; na verdade, são poucos os que buscam avaliação e reconfiguração de tarefas auto-assumidas, uma ínfima minoria, creio eu. Apenas aqueles que estabelecem objetivos muito precisos na vida costumam se fixar a obrigação de sempre reexaminar o trajeto percorrido e tentar alinhar novas metas para o itinerário futuro. Não poderia ser diferente comigo, pois estou sempre engajado em alguma tarefa ou várias (não raro “atrasadas”) todo o tempo. Nem sempre foi assim, mas desde que me reconheço como pessoa pensante (isto é, com minha própria cabeça), tenho sempre leituras esperando e vários trabalhos por terminar, uma interminável lista de “working papers” que parece bem maior nas intenções do que na relação de terminados.
Deve ser alguma doença obsessiva ou um desvio de personalidade, qualquer coisa no meio disso (ou mais além), embora estes termos sejam fortes demais, provavelmente, para caracterizar o que parece revelar apenas certo gosto exagerado pelos livros e um prazer especial no ato de escrever alguma coisa, qualquer coisa, em torno dessas leituras. Como já relatei anteriormente, aprendi a ler na tardia idade de sete anos, e desde então nunca mais parei; não tenho certeza de quando comecei a escrever (compulsivamente, quero dizer), mas também nunca mais parei, seja lá quando começou dessa forma furiosa.
Pois bem, quais são os meus objetivos de vida, pelo menos aqueles declaráveis? Depois de uma tentativa inicial de derrubar o sistema, mudar o regime e recriar a vida – o que vários de minha geração tentaram comigo – acomodei-me no trabalho intelectual, bem menos perigoso, diga-se de passagem, do que minhas aventuras juvenis de criar um outro mundo possível. Na verdade, parece que essa era mesmo a minha vocação original, pois confesso nunca ter me adaptado muito bem a uma dupla vida (embora esse recurso excepcional seja por vezes conveniente). De fato, o ser incógnito não combina bem com o trabalho intelectual de pesquisa, de redação e de publicação de ensaios sobre questões diversas de interesse pessoal ou de relevância social. Alguns, talvez por timidez, assinam com pseudônimo poesias juvenis; outros, como foi o meu caso, usaram pseudônimos em situações de restrições à liberdade e ao direito de expressão, o que correspondeu, em grande medida, à situação do Brasil nos meus anos de formação e desenvolvimento intelectual. Terei, oportunamente, de recuperar alguns desses escritos “alternativos” e reinseri-los no conjunto da produção, o que de toda forma não me parece muito urgente ou importante.
O fato é que, restabelecida a democracia no Brasil, e eliminada de vez a necessidade da discrição ou do subterfúgio, dei início a uma produção escrita que pode ser considerada como razoável nos meios acadêmicos, ou talvez até excepcional no seio da casta diplomática, sempre mais contida na expressão pública de opiniões ou argumentos pessoais sobre temas alheios à sua esfera de competência específica. Essa atividade sempre esteve associada, ainda antes de assumir minha condição profissional de carreira, ao exercício de lides acadêmicas voluntariamente assumidas (e parcialmente cumpridas, na medida de minhas disponibilidades em relação ao trabalho principal).
Nunca me preocupei em ser apenas acadêmico (ou teórico), e de fato sou essencialmente critico em relação à situação de baixa produtividade de nossas universidades públicas, assim como nunca pretendi ser apenas diplomata, mantendo uma atitude de avaliação realista em torno de nossas supostas qualidades apregoadas. De fato, o trabalho intelectual se justifica por si mesmo, sem necessidade de suporte acadêmico ou profissional, sem sequer vinculação a qualquer esforço editorial ou de publicação (sempre um problema num país de restritas possibilidades nessa área, como o Brasil). Na era das tecnologias da informação e da livre disposição e acesso a espaços abertos de comunicação e interação pública, como são os blogs, essas limitações já não representam mais um problema: paradoxalmente, os blogs são o maior “free lunch” que o capitalismo tem a oferecer e não sou eu que vai tentar resolver essa contradição positiva sob todos os pontos de vista.
Para ser mais preciso, desde quase dez anos mantenho meu próprio site pagante – nos cinco anos anteriores em formato gratuito, e limitado – que foi concebido e realizado exclusivamente para fins didáticos e docentes, ou seja para informar, formar e subsidiar estudantes desorientados, jovens dubitativos e outros curiosos eventuais. A despeito de certo número (mais de uma dúzia) de livros editados comercialmente, nunca me preocupei em obter qualquer ganho com os meus escritos, e continuo não motivado por esse aspecto da produção intelectual (já que não tiro o meu sustento dessa frente de trabalho, nem pretendo acumular capital, primitiva ou secundariamente). Daí a grande – alguns diriam enorme – disponibilidade de textos acabados (numerados) em meu site e um volume ainda maior de textos que ainda pretendo escrever (e de livros que gostaria de publicar).
Não tenho uma linha determinada em toda essa produção – respeitável, reconheço – mas tenho consciência de minhas competências e incompetências, embora seja “intrometido” o suficiente para me debruçar sobre questões que não fazem necessariamente parte de meu universo de trabalho ou de pesquisas. De fato, tento concentrar-me em temas para os quais tenho afeição intelectual ou empatias sociais. Afastado o vezo ideológico de meus primeiros escritos – abertos ou “clandestinos” – e a orientação militante de alguns textos sociológicos da primeira fase, tenho seguido a inclinação natural do ambiente profissional – que é o universo das relações internacionais – e meu gosto acentuado pela pesquisa histórica (para a qual não fui treinado técnica ou metodologicamente, diga-se de passagem). Acumularam-se, assim, livros e ensaios sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil, sobre a economia mundial e o desenvolvimento econômico comparado, bem como os trabalhos de história diplomática e de historiografia especializada nessa área.
Também tenho especial gosto pela história das idéias e pelos debates em torno de políticas publicas, em especial nos terrenos da economia e da educação. Nesses campos, porém, sou mais um “livre atirador” do que um especialista com credenciais aferidas. Não deixo, contudo, de elaborar minhas pílulas atrevidas e de oferecê-las livremente, como garrafas lançadas ao mar, esperando que alguém as recolha e retome o debate. Tenho sido um critico unilateral dos chamados antiglobalizadores – ou altermundialistas, como eles preferem se chamar – por encontrá-los especialmente irrealistas, inconseqüentes ou até mesmo prejudiciais à definição de uma via adequada ao desenvolvimento dos países atrasados. Não creio que o correto caminho da prosperidade e do crescimento sustentado passe, de perto ou de longe, pelas políticas preconizadas por esse bando de órfãos das soluções utópicas e de opositores da globalização, mas meus numerosos escritos nessa vertente têm recebido escassa repercussão. Talvez eu não esteja formulando minhas idéias e argumentos de maneira compreensível a maioria de meus leitores, pois confesso certa prolixidade de expressão e uma tendência ao alongamento da discussão (além, ao que parece, de um discutível estilo “florestânico”, adquirido no contato precoce com a escola paulista de sociologia).
Ao fim e ao cabo, o balanço que eu posso fazer de minha produção não é de nenhuma forma desprezível, e digo isso sem qualquer sentimento de auto-elogio ou de satisfação injustificada. Não estou, de verdade, preocupado em acumular volume quilométrico, e a numeração e a listagem de meus trabalhos se destinam exclusivamente à organização necessária da produção (do contrário, eu não conseguiria encontrar algum texto esquecido nas camadas geológicas dessa massa caótica de textos diversos). De certa forma, cumpri com a vocação secreta ou implícita da juventude, qual seja, viver com livros, pelos livros, para os livros, essencialmente no debate e no confronto de idéias. Por certo, poderia ter feito mais do que efetivamente fiz, em especial na finalização de longos ensaios ou livros há muito tempo parados no pipeline dos “working files”, mas isso significa que eu teria de dedicar-me unicamente à atividade intelectual, o que tampouco representa a solução ideal para uma personalidade inquieta, como eu, com a situação do mundo real, em especial no Brasil.
Quanto a prometer novos empreendimentos num momento de balanço e recapitulação, creio que vou eximir de promessas exageradas, pois já são muitos os projetos inconclusos e os esquemas desenhados e não realizados. Se eu conseguir, daqui para a frente, “liquidar” uma parte, que seja, dos textos esboçados e diminuir, ao menos um pouco, a pasta dos “Books To Work”, já me darei por satisfeito pelos anos à frente. Quanto ao público leitor, de fato não sei qual a sua exata composição, a não ser a vaga noção de que estudantes de nível universitário possam estar encontrando, em meu site e blogs, alguns textos interessantes para se divertir ou ajudar em algum encargo acadêmico. Para ser sincero, não escrevo para alguém ou alguma categoria de leitores em particular; escrevo para minha própria satisfação e por necessidade interior, o que me deixa inteiramente indiferente à possível repercussão externa que meus textos possam ter (a não ser a consciência do esforço didático e docente, ainda que indireto).
Em última instância, o sentido de todo trabalho intelectual é uma espécie de diálogo à distância com meus predecessores acadêmicos – os que reforçaram ou forneceram os argumentos usados por mim – e com aqueles que ainda virão, daqui para a frente. Não posso esconder certa frustração – para não dizer séria preocupação – com a deterioração visível do ambiente acadêmico no Brasil, a caminho de uma nítida erosão da qualidade do trabalho intelectual e, no meu universo de atuação (as humanidades), de indisfarçável reforço dos seus elementos mais medíocres (que são também os mais militantes no rebaixamento involuntário da produção acadêmica). Isso está fora de minha capacidade alterar de modo significativo, mas procuro, dentro de minhas áreas de atuação, elevar a qualidade do debate público, sem qualquer ilusão, contudo, de que o Brasil consiga reverter esse quadro no futuro imediato.
Descartando, porém, o pessimismo e o derrotismo, persistirei na minha tarefa auto-assumida de ler, resumir, escrever, ensinar, publicar, debater, que é tudo o que posso fazer de modo inteiramente livre, à margem e paralelamente de minhas ocupações profissionais. Cabe persistir, em quaisquer circunstâncias. É o que continuarei fazendo enquanto disponho de condições para tal. Vale!

Brasília, 19 de novembro de 2009.

terça-feira, novembro 17, 2009

21) Pensando alto, o que é sempre perigoso

Confesso que sou da minoria (e pretendo continuar nela…)
Paulo Roberto de Almeida

Sim, pertenço a uma pequena minoria, certamente no Brasil, talvez mesmo no mundo (ainda que não caiba exagerar...). Não que eu fique preocupado com isso, mas desejo simplesmente falar sobre essa percepção, ou mera constatação, para fins de registro e inclusão em minhas futuras “memórias intelectuais”.
O fato é que eu tenho a nítida impressão de que pertenço a uma minoria, a uma pequena, a uma ínfima minoria que não partilha dos sentimentos, opiniões ou posturas da maioria dos brasileiros. Talvez seja algum elitismo intelectual da minha parte (o que não creio), mas não consigo me entusiasmar com o clima de euforia que acomete (c’est le cas de le dire...) a singela maioria (bota singela nisso) dos habitantes deste país (sans jeu de mots, s’il-vous-plaît...).
Com efeito, eu não consigo seguir, nem puxado, nem empurrado, a unanimidade praticamente arrasadora em torno do “nosso guia” (no Brasil e, em grande parte também, no exterior), esse oba-oba em torno da situação econômica, o embevecimento beato com o “nunca antes neste país”, o ambiente de auto-congratulação permanente com as supostas realizações estupendas deste governo e de sua fantástica máquina de propaganda.
Olhando tudo isso eu não consigo aderir ao espetáculo de panegíricos insensatos (em grande parte self-made e auto-aplicáveis), posto que a realidade que eu vejo é completamente diferente. Não gostaria de destoar do ambiente geral (mas já o fazendo), permito-me ser do contra, não por contrariedade inata, ou desejo de ser diferente, mas simplesmente por não suportar cegueira coletiva.
Vejo, ao contrário do que alguns apregoam por aí, uma degradação constante das instituições, o rebaixamento moral do Estado, a ignorância sendo erigida em qualidade popular, a mentira usada como arma política, a castração do parlamento como simples expediente de confirmação de uma nulidade, o emprego de táticas equivalentes à guerra de eliminação contra os adversários políticos, o desmantelamento consciente (talvez até inconsciente) dos partidos como legítimos representantes de correntes distintas de opinião, enfim, uma deterioração quase completa das virtudes cívicas de uma república democrática e o fortalecimento das piores virtudes do democratismo vulgar e popularesco.
Que me perdoem os muito tolerantes ou os irremediavelmente otimistas, mas não consigo achar nada, absolutamente nada de bom na exaltação do anti-estudo, da falta de leitura, do senso comum erigido em capacidade pensante, dos argumentos vulgares brandidos como se fossem identificação com a massa, desse cultivar de ervas daninhas como se fossem finas flores da inteligência. Sobretudo, não consigo tolerar – me desculpem, mais uma vez, aqueles muito tolerantes – a desonestidade intelectual, a irresponsabilidade no trato da coisa pública, a mentira sistemática que apenas engana os mais ingênuos (mas que é sancionada por aqueles oportunistas que sabem), a mistificação continua de supostos grandes feitos, quando o que se tem, na verdade, é um teatro de ilusões e uma comédia de erros grosseiros.
Assusta-me, por outro lado, ver tantos colegas acadêmicos, tantos parceiros profissionais, tantos pretensos “intelectuais” silenciarem em face de tantas bravatas vulgares, de tantas mentiras deslavadas, de tanta má-fé acumulada, sem nenhum comentário a fazer, sem nenhum gesto de repúdio, sem nenhum sinal de resistência mental, gestual que seja (mesmo sem chegar ao protesto aberto ou à manifestação escrita, como a que agora faço). Fico, de verdade, estarrecido, não tanto em face do perpetrador de bobagens – pois aprendi desde cedo a não esperar nada de inteligente vindo desse lado – mas em face dos supostos defensores da imaginação criadora, do iluminismo teórico, da verdade que liberta. Assusta-me o silêncio culpado e a irresponsabilidade dos intelectuais. Talvez seja covardia deles, talvez seja mero oportunismo.
Não é sem uma ponta de tristeza que contemplo tudo isso, mas tampouco me deixo levar pelo desespero, e nisso não vai nenhum sentimento político, longe disso. Estou aqui refletindo em historiador das idéias, ou, se desejarem outras comparações, em arqueólogo das decadências passadas, em antropólogo das sociedades fracassadas, em psicanalista dos sonhos desfeitos. Não é a primeira vez que uma sociedade se deixa levar pelos piores instintos e pelas mais baixas tendências, pelo declínio intelectual – mesmo em meio a um suposto avanço material – e pela erosão moral. Mas é provavelmente a primeira vez que me é dado assistir a esses fenômenos diretamente, depois de ter lido tanto sobre a decadência em outras sociedades. Até cheguei a teorizar um pouco sobre isso, algum tempo atrás: “Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter preventivo...)”, revista Espaço Acadêmico (ano 6, n. 71, abril 2007; link: http://www.espacoacademico.com.br/071/71pra.htm). Poderia ser um mau filme, apenas um pesadelo, mas é assustadoramente real...
Talvez caiba vaticinar uma previsão: não há nenhum risco de melhorar, no curto ou no médio prazo, cabendo apenas esperar que, no longo prazo, a educação melhorada da maioria permita reverter esse quadro, em favor de uma escolha mais adequada de líderes políticos e de melhores políticas públicas. Não digo isso por elitismo, por arrogância intelectual, apenas pela certeza de que as coisas poderiam ser melhores, um pouco melhores, se tivéssemos uma elite – entre a qual eu não incluo a classe política – preocupada com o destino da nação e não apenas com o seu dinheiro.
Mas, poderão dizer os defensores da “nova ordem”, esta é uma reclamação habitual de intelectuais insatisfeitos e frustrados com o atual estado de coisas, já que esse processo expressaria uma mudança não prevista em seus (nossos) planos elitistas e conservadores, que não contemplariam uma inserção dos movimentos sociais e das camadas populares no jogo político. Creio que não preciso responder a mais esta mistificação, apenas lamentar que as oportunidades de diálogo estão se reduzindo perigosamente, ao ponto do estrangulamento das propostas inteligentes, mas não necessariamente “populares” ou politicamente corretas, sob certos pontos de vista.
Não me repugna viver em minoria, desde que eu mantenha um ceticismo sadio em face das verdades reveladas, nem suportar um isolamento relativo, enquanto conservo um discreto otimismo quanto às chances futuras de um rebrotar da inteligência. Vale!

Brasília, 17.11.2009

quinta-feira, julho 30, 2009

20) Reflexão, ou conselho, de Mario Quintana

Apenas transcrevendo, sem qualquer comentário, ou duplo sentido:

"Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio..."

Mario Quintana

quinta-feira, julho 02, 2009

19) Mais um questionario sobre a carreira diplomatica

Incrível: acho que respondo um questionário por mês. Respondo e depois esqueço. Como suponho que talvez interesse a mais estudantes (não tanto pelos aspectos pessoais, e sim pelas informações sobre a carreira), permito-me reproduzir aqui também.

Questionário sobre a carreira diplomática
Paulo Roberto de Almeida

1) Nome:
Paulo Roberto de Almeida

2) Situação familiar:
Casado, 2 filhos (28, homem, e 19 anos, mulher).

3) Contato:
Ministério das Relações Exteriores

4) Fez planejamento de Carreira?
Não.

5) Teve alguma referência profissional?
Jamais; sem qualquer contato preliminar com a carreira diplomática.

6) Área:
Diplomacia, carreira de Estado, serviço exterior brasileiro.

7) Cargo:
Ministro de Segunda Classe

8) Descrição da Função:
Chefia de departamento, ministro conselheiro em embaixadas do Brasil no exterior, chefia de consulado geral, diversos outros cargos na burocracia do ministério ou, eventualmente, em outras agências públicas federais.

9) Foi motivado por alguma causa/visão/missão etc?
Não especialmente: a carreira surgiu como opção a partir de informação sobre concurso público para ingresso na diplomacia, a partir de minha experiência “internacional” previamente adquirida como estudante no exterior.

10) Objetivos atuais de vida:
Continuar na carreira, por mais algum tempo, até a aposentadoria compulsória, servindo ao Brasil, e ao mesmo tempo me dedicando a atividades acadêmicas paralelas.

11) Formação:
Licenciado e doutor em Ciências Sociais, mestre em planejamento econômico, com especialização em economia internacional, todos títulos obtidos em universidades estrangeiras.

12) Competências:
Ciência Política, relações internacionais, história diplomática, temas de desenvolvimento econômico e de economia política internacional.

13) Habilidades:
Ademais das atividades próprias à diplomacia (informação, representação e negociação), competência acadêmica como professor e pesquisador em temas de relações internacionais.

14) Remuneração média de um profissional da área:
Muito variada, tanto dentro da carreira no exercício burocrático em Brasília, como a serviço do Brasil no exterior; em Brasília, há uma escala gradualmente ascendente de remuneração, de terceiro secretário a ministro de primeira classe, que depende ainda do exercício de funções de chefia (cargos de direção e assessoramento superior), complementado por aluguel moderado por utilização de moradia funcional (variável, também, em função da hierarquia); pode ir de R$ 7 mil a 20 mil. No exterior, a remuneração básica (vencimentos) é corrigida por índices de correção variáveis segundo os postos (correção cambial ou por custo de vida), acrescida de algumas gratificações variáveis por posto (na verdade, a única existente é a ajuda para aluguel de moradia, mas se cogita a introdução de auxílio-educação); pode ir de US$ 7 mil a 15 mil.

15) Estágio do desenvolvimento profissional:
O ministro de segunda classe é o penúltimo estágio na carreira, antes do ministro de primeira, usualmente chamado de embaixador (que na verdade é um título por exercício de chefia de posto no exterior).

16) Percurso que seguiu para chegar no cargo:
Concurso de ingresso na carreira (etapa inicial e obrigatória, uma vez que o recrutamento só se faz por concurso público, exclusivamente por mérito), exames intermediários para ascensão funcional (Curso de Aperfeiçoamento, para segundos secretários; Curso de Altos Estudos, para conselheiros, com apresentação de tese e sua defesa em banca). Todo o processo de ascenção funcional é regulado em legislação própria, implicando seleção dos pares e das chefias para ingresso num Quadro de Acesso, seguido de promoção por antiguidade ou merecimento.

17) Se sente realizado profissionalmente?
Certamente: a carreira diplomática oferece inúmeras oportunidades para o enriquecimento profissional e intelectual, oportunidades de vivência no exterior, em diversas situações, e chances aos familiares para experiência de vida no exterior, com grandes benefícios em termos de estudos e aprendizado.

18) O que teria feito de diferente?
Carreira acadêmica, igualmente gratificante no plano intelectual (e da liberdade de pensamento e atuação), mas certamente menos “remuneradora” em termos de atuação na vida profissional, com possibilidades de influência concreta nos destinos do país, mediante participação em negociações internacionais que por vezes são decisivas para a inserção externa do país e a obtenção de ganhos imediatos no plano de vantagens comerciais, tecnológicas e financeiras, advindas da cooperação e interdependência econômica no plano mundial.

19) O que pensa do futuro desse setor e do próprio futuro profissional?
Deve continuar sendo uma das principais agências de afirmação dos interesses nacionais, uma vez que a diplomacia assume papéis crescentes com a aceleração do processo de globalização e do aumento da interdependência internacional em todas as áreas, com destaque para a economia e a administração dos recursos comuns (em meio ambiente, por exemplo). Continuarei servindo ao país como tenho feito nos últimos 30 anos.

20) Descreva um dia habitual de trabalho:
Na Secretaria de Estado (Brasília), processamento de papéis, que tipicamente são telegramas de embaixadas e missões no exterior, com alguma questão de negociação na qual o Brasil encontra-se envolvido; a partir do insumo inicial, o trabalho constitui uma elaboração da demanda no sentido de se dispor de informações adequadas para elaborar alguma instrução negociadora, a partir da memória existente e da consulta a outras agências públicas envolvidas no tratamento daquela matéria (comercial, financeira, de cooperação técnica, segurança etc). No exterior, se assegura a interface entre o Brasil e governos estrangeiros ou organizações internacionais, com os quais se pode negociar diretamente (no plano bilateral) ou conjuntamente (no caso de atuação multilateral); ou seja, além do processamento da informação, há típicas situações negociais, que envolvem o recebimento de instruções precisas da Secretaria de Estado, sem o que o diplomata teria de agir segundo seu conhecimento anterior de assuntos similares e em função de uma percepção própria do interesse nacional.

21) Grau de estresse existente nesta função:
Não superior a outras funções existentes na burocracia governamental, derivado das deficiências, da baixa coordenação funcional e dos entraves burocráticos normalmente existentes no Estado brasileiro; no exterior, o estresse é geralmente derivado das condições de vida existentes em determinados postos ditos de “sacrifício” (ou seja, apresentando carências e insuficiências no plano material, eventualmente acrescido da falta de domínio de certos idiomas).

22) Maiores dificuldades enfrentadas neste trabalho:
Dificuldades em obter informações adequadas ou embasamento técnico suficiente para a formulação (e ulterior execução) de instruções adaptadas a um determinado processo negociador e que expressem adequadamente o interesse nacional, ele mesmo difícil de ser definido, em função de percepções variadas, por vezes conflitantes do que seja esse interesse, em face de elementos contraditórios (sempre presentes).

23) Maiores satisfações alcançadas:
Poder lograr a conquista dos objetivos traçados nas instruções em processos negociadores nos quais se está envolvido, ou seja, conseguir cumprir as metas definidas pela agência pública à qual se serve (neste caso, o Itamaraty e a política exterior do Brasil). No plano pessoal, ser reconhecido como competente pelos pares e pelas chefias e obter promoções e remoções (postos) condizentes com suas aspirações.

24) O que você destaca como um diferencial nesta área?
A preparação intelectual é, de longe, o principal fator de sucesso na carreira diplomática, muito embora o relacionamento humano também seja relevante para o adequado desempenho das funções. A combinação de mérito pessoal e de capacidade a bem se relacionar com colegas nacionais e estrangeiros é essencial para um bom desempenho nas funções diplomáticas.

25) O que ninguém sabe sobre essa carreira?
Existem muitos mitos cercando a carreira diplomática, geralmente ligados à imagem esnobe ou pretensamente sofisticada que teriam os diplomatas. Trata-se de uma carreira burocrática, como muitas outras, mas envolvendo também uma percepção especial do elemento humano (human factor) nas relações impessoais de Estado a Estado.

26) O que você sugere para quem está se inserindo profissionalmente?
Em primeiro lugar, um cuidado com a preparação intelectual, não apenas no ingresso, mas ao longo de toda a carreira diplomática: ou seja, o estudo constante não apenas dos dossiês, mas de todo e qualquer assunto suscetível de constituir um objeto de negociações internacionais (o que, atualmente, envolve quase todos os aspectos da vida nacional). Em segundo lugar, um cuidado especial com as relações humanas e sociais, uma vez que a diplomacia apresenta alto componente de relações inter-pessoais, mais, provavelmente, do que em qualquer outra carreira pública. Em terceiro lugar, alta disposição para a mudança constante – o nomadismo profissional faz parte da carreira – e capacidade de adaptação a ambientes diversos, por vezes difíceis, pessoalmente ou para a família. Em último lugar, mas talvez o mais importante, uma predisposição para o serviço do país, o que envolve uma percepção aguda do que seja o interesse nacional, nem sempre adequadamente refletido em instruções “burocráticas” recebidas no exercício de funções negociadoras (o que introduz o fator pessoal na administração e desempenho de suas funções). Desenvolvi algumas dessas idéias em meu texto “Dez regras modernas de diplomacia” (disponível neste link).

18) O profissional de RI no setor publico

Mais um trabalho de resposta a indagações de alunos, inédito até aqui.

A importância do profissional de relações internacionais no setor público
Paulo Roberto de Almeida (1 de junho de 2008)
Respostas a questionário de pesquisa de estudante em RI da Unisul, Florianópolis, SC

1 – O profissional de relações internacionais tem muitas possibilidades para atuação num mercado cada vez mais diversificado. Quais são as áreas de atuação que esse profissional pode exercer na esfera pública além da diplomacia?
PRA: Na esfera do governo federal são várias outras: analista de comércio exterior do MDIC; analista de informações da ABIN; assessorias de relações internacionais dos ministérios setoriais (sobretudo aqueles que possuam grande interface internacional, para cooperação e integração, o que atualmente cobre praticamente quase todos os ministérios); assessores parlamentares do quadro oficial do Legislativo, eventualmente até no Judiciário ou esferas correlatas. Nos governos estaduais e municipais (capitais dos estados, grandes municípios e municípios de fronteira), nas assessorias internacionais que possam existir ou nas secretarias de governo especializadas em temas de cooperação internacional (educação, saúde, etc.).

2 – Qual é a importância de um profissional de relações internacionais na esfera pública?
PRA: Pode ser relevante, na medida em que a rede de acordos internacionais (na esfera regional ou multilateral) é atualmente muito grande, exigindo, portanto, alguma expertise, conhecimento, experiência e vivência em cooperação internacional, que vai muito além do mero conhecimento de línguas. Todas as áreas de especialização técnica se beneficiam de cooperação bilateral (entre países, ou até entre serviços especializados dos países) ou de projetos de cooperação mais ampla, envolvendo vários países e, na maior parte dos casos, organismos intergovernamentais, ONGs e outras entidades com interface internacional (do setor privado, do acadêmico ou centros de pesquisa).
O profissional de RI deve ter competência para lidar com todas essas esferas de maneira a poder definir os melhores instrumentos a serem aplicados em cada caso. Ao mesmo tempo, ele deve saber resguardar as esferas de competência privativa dos setores encarregados de negociações em áreas relevantes de interesse público (geralmente a cargo do MRE, mas também Fazenda, Bacen, MPOG e outras agências públicas).

3 – O setor público em geral conhece a necessidade de ter um profissional de relações internacionais e, além disso, sabe de sua importância?
PRA: Na esfera diplomática e setores afins (ou seja, aqueles que estão constantemente em contato com organismos internacionais) certamente, embora nem sempre é o caso em ministérios setoriais que até pouco tempo atrás tinha pequena interface externa no trabalho diário. Mas não é necessariamente o setor público que precisa conscientizar-se da necessidade: ele geralmente emprega os profissionais mais habilitados para o desempenho de funções especializadas, o que nem sempre quer dizer, necessariamente, um profissional de RI: se o BC quer negociar acordos financeiros, ele terá necessidade de técnicos em finanças internacionais, que podem ser antes economistas do que profissionais de RI. Da mesma forma, negociações especializadas em tarifas aduaneiras ou em epidemias de alcance transfronteiriço podem requerer o concurso de técnicos habilitados nessas áreas, não obrigatoriamente o profissional RI.

4 – Existem perspectivas positivas de expansão da área de atuação do profissional de RI no setor público?
PRA: Certamente, na medida em que a globalização é um traço incontornável da nossa época, veio para ficar e se expandir cada vez mais. Presumivelmente, essa tendência vai exigir um número cada vez maior de profissionais de RI, mas não apenas ou não exclusivamente, pois a especialização crescente de determinados temas – como em mudanças climáticas, por exemplo – pode exigir técnicos especializados nesses temas.

5 – O senhor acredita que a maioria dos cursos superiores de RI no Brasil formam um profissional cosmopolita, capaz de atuar em qualquer setor?
PRA: Não, não acredito. Os cursos foram criados apressadamente, para atender a uma demanda difusa, percebida como “importante”, a partir de uma percepção do crescimento da interface internacional em quase todas as esferas da vida pública e privada. Os cursos foram surgindo de maneira empírica e não necessariamente atendem às necessidades seja do setor público, seja do mercado. Acredito que os cursos precisam melhorar muito, ainda, para formarem profissionais habilitados e competentes. Esses cursos constituem uma assemblagem de matérias tradicionais – advindas do direito, da ciência política, da história e da economia – sem necessariamente constituir um corpo coerente de disciplinas voltadas para a formação de um profissional completo ou preparado para enfrentar responsabilidades importantes no cenário internacional.

6 – Como é o trabalho de um profissional de RI que atua em órgãos públicos hoje?
PRA: Basicamente análise de informação e processamento de diferentes insumos que podem servir para a tomada de decisão em sua área de atuação. Para os diplomatas, essas tarefas são acrescidas de responsabilidades negociadoras e de representação, quando trabalhando em embaixadas e missões diplomáticas no exterior. O domínio dos dossiês sobre os quais se têm responsabilidade é essencial para o bom desempenho dessas funções pelos profissionais em RI, funções que são necessariamente variadas em sua diversidade temática e contínuas no seu desenvolvimento cronológico.

7 – Por se tratar de um curso novo, muitas pessoas acreditam que relações internacionais é um curso “complementar” de outros cursos, como administração ou comércio exterior. Tratando-se especificamente do mercado de trabalho, é possível dizer que essas afirmações tem fundamentos?
PRA: Sim, elas têm fundamento – ainda que possam ser parcialmente equivocadas – porque, na verdade, o profissional de RI é um “administrador” de temas diversos, todos situados na interface com o externo, mas que não deixam de ser de “administração” de coisas e de pessoas. O comércio exterior é uma interface importante na vida de qualquer país, na medida em que todas as empresas, hoje em dia, estão confrontadas à concorrência externa e necessitam desenvolver estratégias competitivas que maximizem seus ganhos no mundo e permitam sua sobrevivência no mercado interno. Os cursos de RI não são, obviamente, “complementares” a administração ou comércio exterior, mas eles surgem a posteriori, com um panorama já dominado por esses profissionais que estão no mercado há mais tempo, sendo assim natural que seja assimilados aos primeiros.
A diferenciação se dará aos poucos, na medida em que currículos e oportunidades de mercado forem se consolidando no Brasil. Em todo caso, muitos cursos de RI formarão “administradores de comércio exterior”, o que será sempre necessário...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de junho de 2008

17) Questionário sobre a diplomacia

Mais um questionário respondido bilateralmente, e que tinha permanecido inédito desde então.

Questionário sobre a diplomacia
Paulo Roberto de Almeida (6 de junho de 2008)
a questões colocadas por estudante da Universidade de Caxias do Sul

Breve currículo para crédito da fonte, contendo formação, cargo, embaixada e tempo que atua na função.
Paulo Roberto de Almeida: Doutor em Ciências Sociais (Universidade de Bruxelas, 1984), mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), diplomata de carreira desde 1977. Trabalhou no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Professor no mestrado em Direito do Uniceub e professor-orientador no mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco. Ocupou postos nas embaixadas em Berna (1979-1982), Belgrado (1982-1985), Paris (1993-1995) e Washington (1999-2003) e nas delegações do Brasil em Genebra (1987-1990) e em Montevidéu (1990-1992). Último posto diplomático ocupado: ministro-conselheiro na Embaixada em Washington. Na Secretaria de Estado das Relações Exteriores (MRE) foi chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento (1996-1999). Atualmente (2003), é professor orientador do Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco. (ver mais em www.pralmeida.org)

1) O que caracteriza uma embaixada?
Trata-se, simplesmente, de uma representação política de um país junto a outro, mais especificamente de um enviado de um chefe de Estado junto a seu colega, no quadro de relaçoes diplomáticas normais. Trata-se de uma instituição das relaçoes internacionais muito antiga, hoje formalizada por alguns tratados multilaterais e sempre enquadrados numa determinada relação bilateral.

2) Qual a função do Embaixador?
Três funções, basicamente: representar, informar, negociar. São clássicas, mas o embaixador desenvolve um trabalho de relacionamento pessoal com representantes oficiais do Estado em que está acreditado, mas também alcançando a sociedade civil e meios especializados (homens de negócios, de letras, cientistas, acadêmicos etc).

3) Quais os elementos essenciais e/ou mais importantes para o exercício da diplomacia em um país estrangeiro?
Sensibilidade para as peculiaridades do país em que está acreditado, travar um conhecimento não perfeito, mas suficiente desse país para poder informar de maneira adequada, desenvolvimento de relações sem qualquer tipo de preconceito político ou ideológico, disposição para receber, conversar, travar relações mais amigáveis do que o simples contato burocrático, o que pode facilitar tarefas negociadoras.

4) A seu ver, qual a importância da comunicação no exercício da diplomacia?
A diplomacia vive de informação (muita) e de comunicação (regular, constante, permanente), para o seu próprio serviço diplomático, mas também em direção do país em que se está acreditado. A informação, para qualquer dos lados, mas sobretudo para o país em que se está servindo, precisa ser objetiva, clara, sincera, e se pautar por simples regras de cortesia e de formalidade diplomática.

5) No que o fator cultura interfere quando das ações diplomáticas em diferentes países?
Uma regra essencial para todo diplomata é sua capacidade de representar e de dialogar com os nacionais do país em que serve sem jamais ofender sensibilidades ou incorrer em alguma descortesia involuntária, por desconhecimento da cultura local, da história desse país e de suas orientações políticas básicas. A cultura é o elemento subjacente a qualquer povo, independentemente de suas instituições políticas, de seu desempenho econômico ou mesmo das orientações de sua diplomacia. Conhecer a cultura de um povo facilita enormemente o trabalho de representação e de negociação.

6) A embaixada do Brasil utiliza uma comunicação previamente planejada?
Depende muito da Embaixada. Em grandes postos (digamos Washington, Buenos Aires, Londres, Paris e alguns outros), sempre existem assessores de imprensa e um trabalho conduzido especificamente no plano do relacionamento público e da informação dirigida. Pequenos postos não costumam ter esse tipo de assessoria, por insuficiência de meios, mas isso não quer dizer que o embaixador não possa ter uma estratégica própria de comunicação, obviamente adaptada ao contexto cultural e político e às circunstâncias locais.

7) Todas as Embaixadas brasileiras seguem uma mesma orientação quanto a comunicação, ou cada embaixador é livre para planejar a sua?
Há muita variação nesse particular, pois tudo depende da densidade das relações bilaterais e do engajamento do país nessa relação particular. A regra básica é elevar ao máximo a qualidade das relações, o que implica desenvolver um trabalho sempre adaptado às características especificas do posto. Todo Embaixador pode, e deve, tomar iniciativas e desenvolver seu próprio programa de comunicação, mas nem todos dispõem de meios adequados (financeiros, basicamente, mas pessoal, também) para cumprir grandes objetivos.

Paulo Roberto de Almeida
Rio de Janeiro, 6 de junho de 2008

16) Questionario sobre a carreira diplomatica

Questionário sobre a carreira diplomática
Paulo Roberto de Almeida
(para atender a consulta de estudante; já tinha sido preparado em 25.06.2008, mas permaneceu inédito desde então).

1) Quantos anos vc tinha quando decidiu que queria seguir este caminho?
PRA: Eu tinha 27 anos completos, mas eu fiz o concurso tarde, depois de passar quase sete anos na Europa, estudando, durante o período mais duro da ditadura militar no Brasil, de onde tinha saído no final de 1970, com 21 anos recém completados. Eu não sou critério para o típico candidato à carreira diplomática.

2) Quais foram as suas motivações?
PRA: Na verdade, eu não tinha pensado em ser diplomata anteriormente, tanto porque nos anos anteriores estava mais ocupado tentando derrubar o governo brasileiro, como opositor de esquerda à ditadura militar que eu era (daí o exílio auto-assumido). Fiz o exame quase que por surpresa, simplesmente motivado por um anúncio de concurso direto (isto é, não um vestibular para o Curso Preparatório à Carreira Diplomática, tendo de fazer dois anos de estudo no Instituto Rio Branco, como sempre foi o normal desde 1945). Foram concursos diretos excepcionais, feitos durante alguns anos, depois de medidas de expansão do corpo diplomático brasileiro em meados dos anos 1970.
Uma das motivações minhas foi “testar” a minha “ficha policial”, depois de alguns anos trabalhando contra o governo brasileiro, ainda que com outros nomes: todos os candidatos a carreiras públicas tinham de ser “cleared” pelo Serviço Nacional de Informações. Passei, para surpresa minha. Outra surpresa foi simplesmente dar início a uma nova carreira, com novas perspectivas de vida, depois de uma trajetória de vida e profissional basicamente acadêmica (eu era professor universitário antes de ingressar na carreira).

3) Vc trabalhou durante o período em que esteve estudando para o concurso? No quê?
PRA: Sim, eu estava trabalhando o tempo todo, dando aula em duas faculdades em SP, e praticamente não estudei. Eu estava bem preparado para a maior parte dos exames de ingresso, uma vez que sempre fui um “rato de biblioteca”, com milhares de leituras acumuladas.

4) O que sua família achou da sua decisão?
PRA: Não tinha família própria. Meus pais gostaram da decisão, ainda que não soubessem quase nada sobre a carreira diplomática, vindos de um meio social muito modesto.

5) Vc já tinha filhos?

PRA: Não que eu saiba... Não, não tinha filhos, pois não era casado.

6) O que sua esposa achou?
PRA: Só me casei um ano e meio depois de ter ingressado na carreira diplomática.

7) Ela quis lhe acompanhar desde o início? Deu suporte ao seu sonho e período de estudos?
PRA: Minha esposa é uma nômade nata, sempre teve entusiasmo por viagens, mudanças, andanças contínuas e intensas.

8) Ela trabalha em algo que seja possível lhe acompanhar?
PRA: Ela era economista e de certa forma renunciou à sua carreira para acompanhar todas as mudanças que tivemos, tanto de país, como para cuidar dos filhos, etc. Deixou de ser economista e passou a ser historiadora, fazendo pesquisas em todos os lugares para onde fomos, dedicando-se também, e paralelamente, às artes.

9) Onde vc se orientou para estudar?
PRA: Estudei absolutamente sozinho na pequena e breve preparação para a carreira diplomática. Praticamente, apenas li um livro de Direito Internacional, uma de minhas deficiências, e outros de redação em inglês, a outra deficiência. Apenas isto.

10) Quais materiais usou?
PRA: Livros que eu tinha, outros que consegui, comprando ou emprestando.

11) Como era sua rotina de estudos?
PRA: Nenhuma, apenas lia nas horas vagas.

12) O que fazia para tirar o stress?
PRA: Continuava lendo, algumas obras fora do programa, literatura, sociologia do Brasil, história, etc. Ou seja, eu estou sempre lendo, o tempo todo.

13) Como se alimentava? Fazia exercícios físicos?
PRA: Normalmente. Estava na casa dos meus pais, nessa época, ainda que provisoriamente. Eu tinha praticamente acabado de voltar depois de quase sete anos na Europa e não tinha ainda recursos para viver por minha própria conta.

14) Quanto tempo demorou para vc entrar desde que começou os estudos para o concurso? Quais foram suas maiores dificuldades?
PRA: Três meses. Estudei muito pouco, apenas direito e inglês, como referi acima.

15) Qual o tempo médio de estudo (das pessoas em geral) para entrar?
PRA: Não tenho idéia. Creio que depende de cada um e de sua formação e preparação anterior. Eu sempre fui, como disse, um rato de biblioteca e dominava praticamente o conjunto das matérias, naturalmente, sem jamais ter me preparado anteriormente para esse tipo de concurso.

16) Vc tinha amigos ou conhecidos dentro do Itamarati que lhe forneciam informações ou dicas sobre o concurso?
PRA: Não conhecia absolutamente ninguém, não só no Itamaraty como em Brasília.

17) Quanto influencia o fato de se conhecer alguém lá dentro antes de entrar? O lugar para onde vc é mandado em missões muda de acordo com alguma hierarquia de amizade?
PRA: Não, absolutamente negativo. Os exames de ingresso são totalmente impessoais, não identificados. Ninguém sabe quem está fazendo exame de ingresso, pelo menos nos últimos anos. Até certo tempo atrás (dez anos atrás, talvez), havia uma etapa intermediária composta de uma banca examinadora, supostamente para saber se o candidato tinha mesmo condições ou vocação para ser diplomata. Isso não implicava, porém, em qualquer benefício especial, pois todos os demais exames continuavam não identificados (inclusive um candidato supostamente “apoiado” por alguém de dentro poderia ser teoricamente barrado nos testes psico-técnicos que eram obrigatórios). Uma vez entrado na carreira, pode haver algum tipo de “negociação” para a seleção de algum posto, mas isto tende a ser formalizado de maneira impessoal, também.

18) Como funciona a hierarquia dos diplomatas em função do local para onde são enviados para residir?
PRA: Todos os postos possuem um quadro fixo de diplomatas (geralmente um embaixador, um auxiliar direto, que pode ser um ministro ou conselheiro, dependendo do posto, e depois tantos conselheiros ou secretários em função da dimensão do posto), que está determinado em Portaria e não pode ser mudado arbitrariamente. Ou seja, só se vai para um determinado posto segundo regras muito estritas.

19) Como funciona o mestrado? A pessoa pode escolher assuntos de maior interesse para estudar? Qual é o sistema e horário de estudo?
PRA: Não existe mestrado, estrito senso na carreira diplomática. O próprio curso do Instituto Rio Branco foi equiparado, desde 2002, a um mestrado profissionalizante (tipo C, pelos critérios da Capes), ou seja, o Terceiro Secretário já um “mestre”. No curso da carreira existem duas outras etapas de estudo: como segundo secretário, um Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas, que na verdade é composto de palestras e um conjunto de exames para aferir capacidade intelectual; depois, como Conselheiro, se deve fazer uma tese e defendê-la em banca, o que poderia ser equiparado a um “doutoramento” (embora sem os requerimentos de créditos ou orientação de um doutoramento acadêmico). Não existem horas reservadas a isso, e o estudo deve ser retirado do tempo de lazer pessoal e horas livres.

20) O tempo de estudo é considerado como trabalho?
PRA: Não se aplica, mas um diplomata pode pedir uma licença para “concluir” a sua tese.

21) Quando a pessoa está realizando o mestrado ela só estuda (durante qtas horas?) ou trabalha também (durante quantas horas, e, no quê?)
PRA: Não se aplica. Atualmente, os recém ingressados no curso profissionalizante do Rio Branco estudam pela manha e já trabalham nas divisões pela parte da tarde.

22) E nas missões diplomáticas, ele vai acompanhado por outros diplomatas ou vai só?
PRA: Missão diplomática significa remoção para algum posto: o diplomata é removido individualmente, e parte com sua família apenas. Podem existir coincidências de partidas conjuntas ou simultâneas, mas as remoções são sempre individuais. Uma delegação para alguma reunião especial, ou conferência diplomática, configura uma viagem a serviços, de alguns dias apenas, e podem ocorrer partidas de dois ou mais diplomatas para a mesma reunião (ONU, OMC, etc.).

23) E quanto a moradia? Escola dos filhos? Cursos? Há alguma orientação ou algum tipo de descontos ou posições preferenciais?
PRA: Tudo é administrado pelo próprio diplomática, que tem de encontrar soluções de mercado. Em alguns postos, a embaixada pode dispor de residências próprias. Existe também um auxílio para pagar aluguel, variável segundo os postos, mas nada está previsto para a educação, que fica totalmente no âmbito pessoal.

24) Vc só vai para paises onde saiba o idioma?
PRA: Não, não existe nenhuma relação. Este não é o critério para remoção. O diplomata tem de saber inglês e algumas outras línguas preferencialmente, mas os postos são os mais variados possíveis.

25) Como vc faz para equilibrar o tempo entre trabalho/obrigações extras/amigos família?
PRA: Questão puramente pessoal, cada um se organiza como deseja ou pode. A carreira não é diferente da carreira militar, ou pode ser vista similar a de executivos de empresas internacionais. Existem horas de trabalho, algumas obrigações sociais (recepções, etc.) e o resto depende de cada um. Eu viajo ou leio...

26) Quando vc está morando fora do Brasil, tem passagens gratuitas e algum tempo disponível para vir ao Brasil?
PRA: Não, cada um usa as férias como desejar. Se alguém é chamado a serviço, recebe passagens e diárias, mas isso é determinado por necessidade de serviço, não segundo as preferências ou desejos de cada um.

Respostas preparadas em 25.06.2008